A cidade plácida, sem sinal do Chico Fininho

A Cantareira pode não ter uma placa toponímica a identificá-la, mas é um dos locais mais característicos do Porto. Terra de pescadores, foi escolhida para morada de uma das personagens mais famosas da cidade, o Chico Fininho.

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Era o meu primeiro ano de trabalho e eu tinha aterrado no Porto, chegada de um curso em Lisboa e de uma casa na Maia. Um dos meus chefes disse-me que fosse à Cantareira, para ver como iam as obras e eu, como acontecia tantas vezes nessa altura, fiquei a olhar para ele com cara de caso. Que raio de sítio era esse, a Cantareira?

Os meus chefes eram rapazes bem-dispostos, algo mordazes e mais do que satisfeitos por poderem gozar um bocado comigo, a novata que chegara ali via indicação de um chefe na capital, e é claro que se fartaram de brincar por eu não saber o que era a Cantareira. A Cantareira, esse canto feito aldeia de pescadores do Porto, ali onde a Foz do Douro não é ainda terra de gente rica, mas uma fila de casas baixas e portas voltadas para a rua, que antes das obras desse ano de 1998 eram incapazes de travar a entrada das águas do Douro, à mistura com o sal do mar, quando o tempo se fazia bravo e as ondas galgavam a terra.

Não me lembro já se cantaram o Chico Fininho (não me parece que o tenham feito), mas falaram-me dele, claro, do Chico Fininho, “o freak da Cantareira”, que “da Cantareira à Baixa” e “da Baixa à Cantareira” conhecia os flipados todos de ginjeira. Ora, não fosse por outra razão, eu devia conhecer a Cantareira à custa do Chico Fininho. Porque essa terá sido, porventura, a primeira música fora do universo infantil que captou a minha atenção. Quando a personagem de Carlos Tê surgiu no álbum Ar de Rock, de Rui Veloso, em 1980, eu ia começar a escola primária. Lembro-me de forma muito clara, de estar no Interlúdio, onde a família ia tomar café depois do almoço, de cabeça erguida para o televisor suspenso no topo de uma das esquinas da sala, sem conseguir despegar os olhos e os ouvidos daquele tipo magricela, óculos grandes e bigode, a cantar aquela canção de ritmo rápido e alegre.

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Eu entoava o Chico Fininho e sou capaz de ter encaixado a palavra “Cantareira” no sítio certo, mas também é provável que a tenha trocado por “cantadeira” ou outra coisa qualquer, sem chegar a identificá-la como um local real no Porto. Vinte anos depois de o Chico Fininho ter catapultado Rui Veloso para a fama, Carlos Tê contava ao PÚBLICO que o facto de o freak morar na Cantareira fora um mero acaso, já que ele próprio morava no Bairro da Pasteleira e costumava passar por ali, nas suas caminhadas a pé.

Ora, a Cantareira, que é uma zona ali entre as ruas de Sobreiras e do Passeio Alegre, mais ou menos entre a estátua d’O Anjo Mensageiro, de Irene Vilar, e a Capela-Farol de S. Miguel-o-Anjo, o mais antigo farol do país, mandado construir em 1527, pelo então bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, é uma zona bem característica do Porto. É ver as casas baixinhas, de fachadas cobertas de azulejo, que se perfilam nesta extensão e sabemos que estamos na Cantareira. É olhar os barcos parados nas águas sossegadas e os homens de peles gretadas e rugas profundas que se atarefam em torno de uma rede ou limpam os últimos exemplares da pescaria do dia e não há que enganar. Estamos no local cujo nome pode não estar inscrito em qualquer placa toponímica, mas que já era mencionado, pelo menos, no século XIII.

No Porto, ninguém diz que vai ao Passeio Alegre quando vai à Cantareira. O Passeio Alegre é depois, é o jardim que se estende para lá da Cantareira. Esta é outra coisa.

Em 1998, quando o meu chefe me disse que fosse ver o que se passava com as obras na Cantareira, ainda andavam por lá as máquinas a remover terra de um lado para o outro, roubando espaço ao mar, para que as casas baixinhas da Cantareira não estivessem protegidas apenas por uma rua estreita. O resultado foi um passeio amplo, que entrou água dentro, ganhando espaço para restaurantes, jardins, estacionamento e uma espécie de calçadão. A cidade ali é mais plácida. As pessoas percorrem o chão ganhado ao rio, em passo rápido ou languidamente, empurrando carrinhos de bebé, puxando um cão pela trela, parando para tirar fotografias. A Cantareira é um Porto com outro ritmo. E onde não vislumbrei, quando lá fui ainda há pouco, qualquer sinal do Chico Fininho.

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