Pan Brasil

1. Alguém capaz de falar ao Brasil, cabeça, coração & estômago, num domingo em Paraty, e na segunda recompor, cantar e tocar num lugar do Rio de Janeiro que eu nunca vira aceso, aberto: José Miguel Wisnik.

2. Perante um país onde quem mais morre de violência são jovens negros, o evangélico presidente da Câmara de Deputados acaba de manobrar a redução da maioridade penal para 16 anos. Não sei o que o Evangelho tem a ver com prender quem já nasceu no fundo da estatística e ainda não cresceu, mas Eduardo Cunha, que celebra cultos na própria Câmara, deve supor que sabe. E cadeia no Brasil quer dizer o que disse um recente ex-ministro da Justiça: preferia morrer a ser preso. Em Paraty, Wisnik fechou a festa dedicada a Mário de Andrade usando outra palavra para cadeia no Brasil: esgoto.

3. Que a morte violenta no Brasil é cada vez mais jovem e negra provam os números, um terço acima da estatística anterior: entre 154 brasileiros assassinados por dia, mais de metade têm entre 15 e 29 anos, dos quais 77% são negros. Qual a relação de Mário de Andrade com isto? Wisnik resumiu: “Vamos ler, hoje, o projecto de Mário para a educação como sendo aquilo que nenhum partido tem assumido com vontade política suficiente: educação e cultura como luxo para todos. Este é o projecto subjacente que faria o Brasil renascer de si mesmo. Essa é a crença de alguém que acredita que somos um povo criador, que seria capaz de proezas civilizacionais incríveis se algum génio do óbvio oculto tivesse a capacidade de juntar esses dois fios, educação e cultura, em vez de fazer tudo como agora para jogar a juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões.” Sozinho no palco, folhas no colo, Wisnik cantou então estes versos da Garoa do Meu São Paulo, de Mário de Andrade:

Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro
Passa e torna a ficar branco

E o que se seguiu foi o próprio Mário de Andrade, numa rara gravação que nos dá o sopro do corpo como só a voz faz, projectando quase um holograma, disse Wisnik.

4. Mas, recuando às origens, toda a história familiar do homenageado este ano em Paraty fala do nó racial em que o Brasil continua enredado, e esse foi o caminho que a conferência de Wisnik percorreu. Porque, tanto por parte de pai como de mãe, Mário de Andrade é o fruto de cruzamentos mestiços, um com casamento, o outro não. E, comparado com os seus irmãos, foi o “mulato, feio”, “como se tudo o que a família calava viesse à tona nele”.

5. Esse, sublinhou Wisnik, é “o segredo inconfessável do Brasil”, não a recém-divulgada carta enviada por Mário de Andrade a Manuel Bandeira sobre a sua “tão falada [pelos outros] homossexualidade”. Essa carta, que antes de vir à tona na véspera da Flip alimentou especulações e depois disso bandeiras, “foi esperada como fosse revelar a quem foi dedicado o poema Girassol da Madrugada, quem era aquele amor homoerótico que está tão bem expresso ali”, disse Wisnik. No entanto, “o que ela traz é um comentário sobre a vida sexual em tempos de misérias, onde a pessoa pode ser apenas um modelo sexual que já está formatado”, quando Mário era um pan-sexual, alguém com uma sexualidade múltipla, total. Wisnik citou Lacan: “Ele diz que ninguém sabe a vida sexual de ninguém e o resto é fofoca. O sexo é esse impenetrável, é isso o que a carta está dizendo.”

6. Wisnik partiu de Paraty ao começo da noite de domingo, não para São Paulo, sua cidade, mas para o Rio de Janeiro, onde na noite seguinte estreava o seu novo disco, Naze, uma parceria com a cantora Ná Ozzetti. Fiz aquelas mesmas curvas ao longo da costa entre a manhã e a tarde de segunda, e quando pus o pé no chão do Rio de Janeiro havia um véu no ar que me fez pensar na garoa paulista, essa quase-chuva, chuva-pó. Mas nada a ver, apenas um vestígio de neblina, e lá estavam aqueles morros, aqueles verdes, aquela extravagância extra-humana que é o antípoda de São Paulo.

7. Era noite quando percorri a orla carioca do Jardim de Allah à Lapa. Ao longo de todos os anos em que morei no Rio houve sempre um nome caído, fechado, naquela esquina: Sala Cecília Meireles. Passávamos sob ele como por baixo de uma ruína, todo um teatro abandonado. Agora o nome estava iluminado, com gente à porta, porta aberta. Um paulista trouxe-me assim de volta ao Rio. Já nem moro cá mas é casa, se fui estrangeira era outra.

8. O paulista contará à plateia de cariocas que várias destas músicas eram coisa de baú, só tocadas entre amigos desde os anos 70. Um dia, há 30 anos, Ná cantou uma canção de Zé, não por acaso no casamento dele, e agora, enfim, juntaram-se para guardar essa longa parceria de muitas parcerias, porque a arte é a parte poligâmica da vida, diz este paulista tão difícil de reduzir (professor de literatura, ensaísta, escritor, compositor, pianista, cantor). Duas baterias, baixo, guitarra, piano, duas vozes: transposição para palco de um disco com 14 canções, todas compostas por Wisnik, algumas a solo, outras a partir de poemas de Fernando Pessoa (Sim, Sei Bem), Oswald de Andrade (Noturno no Mangue), Cacaso (Louvar), Paulo Leminski (Gardênias e Hortênsias, Subir Mais, Sinais de Haikais), Alice Ruiz (Sinal de Batom), Marina Wisnik (Miragem) e Paulo Neves (Alegre Cigarra, Som e Fúria, A Noite). A canção do casamento diz:

Louvar a gente do lugar
louvar quem vai nascer
quem vai permanecer
também quem vai passar.

9. O que nasce contém o que passa e o que permanece, tudo demorando em ser um, total, pan, como Mário de Andrade. Ou aquela frase do Brasil-droga que Wisnik fez falar lá em Paraty: pode-se morrer de Brasil e ser salvo pelo Brasil.

Foto
Walter Craveiro
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