Vice do Supremo diz que o acordo ortográfico é inconstitucional e não pode ser usado nos tribunais

Num voto de vencido, no âmbito do caso em que foi confirmada a pena disciplinar do juiz Rui Teixeira, o vice-presidente da mais alta instância judicial denuncia que o Governo usurpou poderes e colocou em causa o princípio da identidade nacional e cultural e o direito à Língua Portuguesa.

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Um dos tópicos mais procurados diz respeito às dúvidas sobre a aplicação do Acordo Ortográfico Nuno Ferreira Santos

O vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça Sebastião Póvoas considera que a aplicação da resolução do Conselho de Ministros que obrigou as escolas e todos os organismos do Estado a aplicar o novo acordo ortográfico é inconstitucional e não pode ser aplicada também nos tribunais.

“Independentemente de abordar a constitucionalidade e a legalidade desta resolução, é inquestionável que a mesma não se aplica aos tribunais mas, apenas, e eventualmente à Administração Pública”. Sebastião Póvoas denuncia que o Conselho de Ministros, com esta resolução que é “inconstitucional a título orgânico”, violou “os princípios da separação de poderes”, não respeitou a “equiordenação entre os órgãos de soberania” e a “independência dos tribunais“. Acusa também o Conselho de Ministros de “usurpação de poderes”.

A denúncia foi deixada pelo magistrado da mais alta instância judicial em Portugal numa declaração de voto de vencido a propósito da decisão do Supremo que recentemente confirmou a pena disciplinar ao juiz Rui Teixeira por este ter rejeitado receber documentos com o novo acordo ortográfico. “Nos tribunais, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário”, escreveu então Rui Teixeira num despacho.

Sebastião Póvoas concorda e elogia aquele juiz, destacando que foi “rigoroso” por ter, afinal, tentado evitar “a aplicação de um tratado não vigente”.

E porquê é que o tratado não está afinal em vigor? “Se o Acordo/Tratado não foi ratificado por todos os Estados que o subscreveram (e não o foi, seguramente, por Angola e Moçambique) não está em vigor na ordem jurídica internacional”, esclarece Sebastião Póvoas.

O juiz avisa que o novo acordo ortográfico coloca em causa princípios e direitos consagrados na Constituição da República, como o “princípio da identidade nacional e cultural”, o “direito à Língua Portuguesa” e o “princípio da independência nacional devido às remissões para usos e costumes de outros países, para se apurar quais as normas resultantes de algumas disposições do acordo ortográfico, que remetem para o critério da pronúncia”.

Neste ponto, o Sebastião Póvoas sublinha que a Constituição “não pode ser alterada através de uma lei de revisão constitucional, mediante a consagração de vocábulos estranhos ao Português europeu, seguindo o acordo ortográfico, por atentar contra limites materiais de revisão”.

A resolução do Conselho de Ministros de 2011 determinou que, “a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam” a nova grafia “em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações”. Para o vice-presidente do Supremo, porém, esta resolução “consubstancia uma ordem” e um poder que o Governo “não tem em relação à administração indirecta e à administração autónoma”, onde se incluem os tribunais.

No caso concreto de Rui Teixeira, o Supremo considerou que o juiz violou o dever de obediência e de correcção. Estava em causa uma comunicação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) datada de 2012. O CSM concluiu que não pode indicar aos juízes se deveriam ou não escrever conforme o novo acordo ortográfico ao mesmo tempo que os advertiu que não poderiam indicar aos “intervenientes processuais quais as normais ortográficas a aplicar”.

Sebastião Póvoas salienta que esta deliberação do CSM não foi comunicada aos juízes. O conselho “limitou-se a constar [publicar] a acta no sítio do CSM e não nos lugares próprios”, que neste caso, “seriam as janelas, avisos” ou “circulares que os juízes consultam”. Lembra ainda que os “tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” e não a “ordens e instruções”. O conselho, sendo um órgão de gestão e disciplina, não pode dar ordens aos juízes, conclui.

Muitos juízes e procuradores estão a favor e outros tantos contra a nova grafia pelo que a questão não é pacífica no meio judicial. A presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Maria José Costeira, e o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, recusaram, aliás, comentar o tema.

Já em 2012, um juiz do tribunal de Viana do Castelo emitiu uma ordem de serviço proibindo a utilização da grafia do novo acordo ortográfico, alegando que os tribunais não estão abrangidos pela resolução do Governo. Para o juiz, além da questão legal, estava em causa a interpretação jurídica dos textos que se poderiam tornar indecifráveis em casos, por exemplo, em que “corretores” da Bolsa e a função de “corrector” não são, mas podem parecer a mesma coisa com a nova grafia.

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