Maria Barroso: a coragem de dizer a educação e a poesia

Ficam para sempre, na memória de todos, a impressão de que Maria Barroso trazia consigo a limpidez das palavras que os poetas escreviam.

Um recital de Maria Barroso:

 

Dentro da garganta

qualquer coisa houve

que o ardor constante

do ar explorou

 [...]

Dentro deste povo

qualquer coisa houve

qualquer coisa coube

na voz desta voz

 

Dentro desta voz

qualquer coisa coube

que singrou em nós

e em nós rebentou

 

Gastão Cruz in A Doença (1.ª ed., 1963)

 

Falar de Maria de Jesus Barroso Soares é lembrar, para além das mais diversas facetas do seu humanismo, a figura cultural, a personalidade íntegra que, desde 1949, acompanhou Mário Soares na luta pelos seus concidadãos, em nome de valores que, hoje, de novo estão em perigo: os valores da liberdade, da solidariedade e da fraternidade.

Actriz, discípula de Amélia Rey Colaço, algumas célebres representações suas ficaram na memória de quem a viu desempenhar papéis de forte carga e densidade dramáticas: a peça de Régio, Benilde ou a Virgem-Mãe e, no cinema, o filme de Paulo Rocha, Mudar de Vida. Essa dimensão teatral, a pedir homenagem também, conjugava-se com um outro plano de cidadania que não devemos esquecer: refiro-me à educação como trave-mestra de uma vivência decidida e serena e que, em momentos de crise, se afirmava pela voz da poesia como aviso, revolta, desejo de humanidade.

Amiga de poetas – da geração neo-realista, onde pontificavam os nomes de Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Políbio Gomes dos Santos, Fernando Namora ou Joaquim Namorado –, mas também de autores mais jovens, aos quais sempre dedicou enorme atenção, Maria Barroso fez da palavra poética essa “casa limpa” de que Sophia nos falou. A sua voz unia gerações e estéticas, declamando David Mourão-Ferreira ou, noutras ocasiões, Fiama Hasse Pais Brandão.

Os recitais de Maria Barroso eram, de resto, momentos de enorme emoção, fosse pelo poder e rigor da sua forma de dizer textos como “Mataram a Tuna”, de Manuel da Fonseca ou “Xácara das Bruxas Dançando”, de Carlos de Oliveira, fosse porque, heroicamente, Maria Barroso fazia desse modo de dizer a poesia uma arma de arremesso contra uma ditadura vil, absurda e que ofendia a dignidade de um povo.

Dizer a poesia em tempo de salazarismo, enfrentando, com enorme coragem física e intelectual, a brutalidade dos algozes desse Estado Novo, exigia da parte de Maria Barroso um profundo conhecimento dos textos. Textos que sabia de cor. De coração. Não creio que possamos dissociar esse conhecimento da poesia da vincada inclinação para o ensino, para a educação. O valor que atribuía à recitação da nossa tradição poética prendia-se com a forte convicção de que não há país que resista à vertigem do mundo se não tiver presente a sua memória cultural. Nos mais diversos planos da sua vida, foi-lhe a poesia esse “grito claro”, esse grito de libertação, porque não lhe era possível “adiar o amor para outro século”, como escreveu António Ramos Rosa.

Ficam a dever-lhe imenso os poetas portugueses. Ouvi-la, na sua voz firme, dizer os versos de Joaquim Namorado: “Abafai-me os gritos com mordaças / maior será a minha ânsia de gritá-los!” é manter vivo esse grito de alerta para os nossos tempos ínvios. Na verdade, para os que a ouviram desde há mais de cinquenta anos, ficam para sempre, na memória de todos, a impressão de que Maria Barroso trazia consigo a limpidez das palavras que os poetas escreviam. Sirvam, neste momento, como homenagem dos poetas a Maria Barroso, os versos de Gastão Cruz que escolhemos como epígrafe.

Professor e crítico literário

 

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