Taiwan descobre um país de cinema

Na edição deste ano do Taipei Film Festival, ouve-se português: 22 longas, 33 curtas e 3 realizadores “em foco”. Para os taiwaneses, ver filmes portugueses é reverter o olhar, é ver e decidir o que é bonito hoje: foram os portugueses que no século XVI baptizaram a ilha Formosa.

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João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata são, com Pedro Costa, cineastas em foco” na edição deste ano do Taipei Film Festival, a decorrer até 18 de Julho na capital de Taiwan tezuka shin

O Fantasma ainda não começou e João Rui Guerra da Mata já exulta: “Que bonito é uma sala esgotada para ver um filme português!”

João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata são, com Pedro Costa, “cineastas em foco” na edição deste ano do Taipei Film Festival, a decorrer de 26 de Junho a 18 de Julho na capital de Taiwan, Taipé.

É um sábado à tarde de calor e sol mas a sala do Shing Kong Cineplex (um dos três locais onde decorrem as sessões) está cheia para O Fantasma, o primeiro filme de João Pedro Rodrigues, onde Guerra da Mata foi responsável pela direcção artística, guarda-roupa e parte do argumento. Enquanto o filme passa reina um silêncio reverencial, só levemente entrecortado pelo mastigar de algumas pipocas. Os espectadores sorvem as nuances das sombras com a mesma avidez com que enfrentam as cenas de sexo explícito que alimentaram controvérsia aquando da sua estreia, como disse o realizador na sessão de perguntas e respostas.

A maioria fica para essa sessão onde Rodrigues e Guerra da Mata se revezam para contar como prepararam o filme onde “nada foi improvisado”, desde a ideia inicial ao brilho do fato de látex do protagonista. Quando o moderador convida o público a fazer perguntas há várias mãos a competir para intervir. As reacções são variadas: alguém insiste nas partes que “não são claras” (acrescentando que “estes filmes estrangeiros têm todos disso”);  alguém pergunta sobre uma possível relação entre os muitos cães que surgem no filme e a condição humana. Há um estudante de cinema que indaga sobre o trabalho de som.

Uma hora de Q&A na sala não chega e a conversa prossegue no exterior, onde depois das fotos da praxe se monta uma mesa para os autógrafos. A fila forma-se com a diligência com que se espera por tudo em Taiwan. Na maioria são jovens que aguardam pacientemente a sua vez para estender um papel ou tirar uma selfie. Os dois cineastas fazem desenhos nos catálogos e bilhetes que lhes dão para assinar. Uma rapariga diz a Guerra da Mata que ele lhe faz lembrar Woody Allen. O clima é de entusiasmo e descontracção. Pouco depois, ele dirá ao Ípsilon o quanto os públicos asiáticos (o cinema da dupla já mereceu duas retrospectivas no Japão e também já passou na Coreia do Sul, Macau, etc.) são sempre entusiastas e eclécticos, tanto correndo para os Fantastic Four como para cinema de autor.

Taiwan não é excepção. “Os materiais promocionais desapareceram num instante” nota Guerra da Mata. Eram notórios o interesse e curiosidade revelados pelos taiwaneses. Dois dias antes, após uma sessão que incluía Alvorada Vermelha, A Última Vez que Vi Macau e Mahjong vários membros do público aproximaram-se para lhes dizer ou mostrar algo. Um deles foi o realizador de outro dos filmes no festival, o japonês Suzuki Yohei, que trazia nas mãos a edição taiwanesa do DVD de Morrer como um Homem, cuja existência João e João desconheciam.

Na manhã daquele sábado a “peregrinação” ao autógrafo também ocorrera após a conversa oficial pós-sessão de Ossos, de Pedro Costa. Nada desanimou os aficionados taiwaneses, nem o  desencanto de Costa no Q&A, onde se ouviram coisas como “não gosto propriamente do cinema hoje, quase poderia dizer que odeio o cinema – uma pena para vocês que estão num festival de cinema”.

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As filas formam-se com a diligência com que se espera por tudo em Taiwan. Na maioria são jovens que aguardam pacientemente a sua vez para estender um papel ou tirar uma selfie

A sala de Ossos estava quase cheia e o Q&A foi menos sobre aquele filme em específico ( “demasiado cinemático”, diz o autor com o seu olhar de hoje, que agora se quer “afastar do cinema”) e mais sobre uma lição de encarar o cinema e o seu lugar no mundo. A alguém que pergunta a Costa por que se sente tão atraído pela comunidade que filma desde Ossos ele responde que 90% ou mais do nosso planeta é composto por pessoas como aquelas. “Cada comunidade é diferente, mas o sofrimento é comum à maioria da população do nosso planeta” e a atracção não são as pessoas mas sim poder “fazer filmes com elas”, trabalhar com elas de maneira “decente”, “com justiça”, como outrora o cinema fazia antes de começar a “ignorar esta parte da humanidade”. Menciona Chaplin e Edward Yang. Um cinema que fazia as pessoas irem para casa “a pensar em algo”. As perguntas seguintes tentam explorar a natureza do seu trabalho com a comunidade e a dimensão política do seu cinema, outras referem outros trabalhos do autor, revelando que há na audiência quem seja conhecedor de filmes seus além dos que passam no festival.

Foi de Pedro Costa o filme com que, no segundo dia, arrancou a programação portuguesa do festival. Casa de Lava passou numa tarde para uma sala composta mas não cheia, embora a audiência fosse dedicada: em silêncio absoluto, imperturbável, paciente. Só no final dos créditos a plateia arredou pé. Lá fora junto aos catálogos vendia-se Casa de Lava – Caderno. Não está no chinês local mas os que se aproximam da banca folheiam-no com interesse.

É a primeira vez que João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata e Pedro Costa visitam Taiwan, dizem-nos. Mas todos associam a ilha ao seu cinema. Pedro Costa conheceu Edward Yang, que menciona algumas vezes e de quem admira “todos os filmes”. A primeira coisa que lhe veio à cabeça como imagem de Taipé veio dos filmes dele e são “as motas”. Quando falou connosco tinha chegado há pouco e a cidade estava por descobrir, mas primeiras observações lembram-lhe, a espaços, o Japão. Ainda que seja a primeira deslocação de Costa à ilha, os seus filmes já antes tinham sido exibidos nos festivais locais. Por exemplo, Cavalo Dinheiro passou na edição de 2014 do Golden Horse Film Festival e irá passar num outro ainda este ano.

Para João Pedro Rodrigues, a grande referência é Tsai Ming-liang, realizador malaio que trabalha sobretudo em Taiwan. Ele e Guerra da Mata irão reencontrá-lo em Taipé. “No café de Tsai?”, perguntamos, referindo-nos ao salão de café-galeria que Tsai abriu há poucos anos numa ala do Zhongshan Hall (onde fica outra das salas do festival, um edifício histórico onde, em 1945, foi assinada a rendição das forças japonesas em Taiwan à República da China). “Não, porque fechou!”. Quase poderia ser uma cena de um filme de Tsai: os amigos estrangeiros que se vão reencontrar com Tsai num café que... desapareceu.

Rodrigues chama-nos a atenção para o facto de o edifício onde fica o Shing Kong Cineplex (centro comercial semicaótico onde bancas de produtos electrónicos partilham espaço com máquinas de jogos e lojas de longos vestidos quase kitsch) foi onde Tsai rodou Rebels of the Neon God. Estar ali é como “completar a experiência” do filme. Rodrigues vê Tsai como alguém que, como ele, procura criar uma cartografia emocional da cidade. Numa das sessões de perguntas e respostas alguém nota semelhanças entre a maneira como Tsai filma Lee Kang-sheng e Rodrigues filmou Ricardo Meneses em O Fantasma. Há ecos entre estes cinemas, feitos em lugares distantes mas que partilham a mesma preocupação por uma geografia urbana de solidão e desejo.

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A alguém que pergunta a Costa por que se sente tão atraído pela comunidade que filma desde Ossos ele responde que 90% ou mais do nosso planeta é composto por pessoas como aquelas taipei film festival

Em busca do cinema português
Ao todo serão 22 longas, 33 curtas e 3 realizadores “em foco” com retrospectivas que representam o cinema português. Além do habitual catálogo, foi editado um livro, o bilingue (chinês-inglês) Putaoya dianying / Portuguese Cinema. A organização promoveu o evento na sua página de Facebook como “a maior mostra de cinema português na Ásia de sempre”.

O Taipei Film Festival, na sua 17ª edição, é um dos mais importantes da região. Apesar do impacto abrangente (na secção de competição nacional de longas e curtas elegem-se filmes taiwaneses recentes, na de competição internacional são admitidas primeiras ou segundas obras de produção taiwanesa ou estrangeira), este é um festival local, financiado pelo governo da cidade. Todos os anos desde a 4ª edição é escolhida uma “cidade em foco”. Nos últimos anos foi Estocolmo, Istanbul e Varsóvia. Este ano é Lisboa.

Apesar da temática citadina, Kuo Ming-Jung explicou ao Ípsilon que a cidade é um pretexto para descobrir uma cinematografia que é nacional e não local. “Desde o início desta linha [‘cidade em foco’] que a programação tem incorporado cinema nacional e a sua história do cinema e autores-chave da cidade seleccionada”, diz. “Creio que a lógica foi uma de necessidade – por um lado, uma vez que o festival foi fundado por um governo local, é preciso enfatizar o ‘factor citadino’, no entanto, como é um grande festival de cinema em Taiwan, iria parecer uma escolha demasiado de nicho programar apenas filmes  que representam a cidade quando a cultura cinematográfica do país (por exemplo, no caso do cinema português) é ainda desconhecida para nós.” Assim, “quando escolhemos filmes para esta rúbrica da ‘Cidade em foco’, tentamos procurar como a cidade é retratada no cinema nacional e indicar isso na tradução ao nosso público. Porto nos filmes de [Manoel de] Oliveira, o Norte de Portugal em Trás-os-Montes [de António Reis e Margarida Cordeiro] e Lisboa em Os Verdes Anos [de Paulo Rocha], Belarmino [de Fernando Lopes] ou o Fantasma é algo a que prestamos atenção e referimos ao público.”

Porquê Portugal e porquê agora?. “Os prémios recebidos recentemente por filmes portugueses em festivais internacionais chamaram a atenção”. Depois havia a percepção de “um vazio de conhecimento sobre filmes portugueses”. “Esse foi o começo”, diz-nos. “Após fazer algumas pesquisas e me ter apercebido de que a indústria em Portugal estava num estado crítico, o caso tornou-se ainda mais interessante. Como é que os cineastas portugueses continuam a trabalhar e trabalhar mantendo os seus estilos individuais enquanto enfrentam dificuldades? Quando produções cinematográficas taiwanesas estão ansiosas por entrar no mercado chinês [da China continental] e procuram ser mais comerciais e fazer cinema de género para agradar às audiências, a situação e persistência dos cineastas portugueses pode ser um exemplo para a indústria local”.

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Além do habitual catálogo, foi editado um livro, o bilingue (chinês-inglês) Putaoya dianying / Portuguese Cinema
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O que é comum a estes cineastas, o que faz com que se possa sequer falar de “cinema português”? Para João Rui Guerra da Mata e João Pedro Rodrigues a coisa que todos têm em comum é a falta de apoios. Num país em que não se apoia a arte e a cultura, em que “não há dinheiro” e já nem há Ministério da Cultura (um dado que os cineastas também frisaram), há uma presença constante em festivais internacionais em que cineastas ganham prémios importantes. Repetidas vezes e pelo mundo todo. “Há interesse internacional, fala-se deste cinema”.

Para Guerra da Mata é extraordinário constatar como públicos como o taiwanês ultrapassam obstáculos linguísticos e até alguma vergonha e acorrem para falar com eles, fazer perguntas – reacção que não vê no público português. Guerra da Mata e Rodrigues observam como é importante a ida de cineastas portugueses aos festivais, que acompanhem os filmes e ponham um rosto associado a um nome. A experiência no Taipei Film Festival é elucidativa. Todos os cineastas tornam exemplares as sessões de Q&A, num inglês perfeito, plenas de conteúdo, complementando, mas não abafando, as questões em aberto lançadas pelas obras.

A ideia de falta de financiamentos é reiterada por Pedro Costa ao Ípsilon. “Não há democracia absolutamente nenhuma no negócio do cinema”, disse, nem no mundo pequeno desse cinema “mais difícil”. E afirmou: “Precisa de haver um equilíbrio entre o que está atrás e à frente da câmara, se não houver equilíbrio o dinheiro é visível no ecrã” e isso corrompe o cinema.

Mas mostrar cinema sem concessões requer patrocínios e o Taipei Film Festival tem também de lhes dar o seu momento. Aos realizadores é pedido que seleccionem o autor da melhor pergunta de Q&A para receber como prémio um par de sapatos Dr. Martens. “Coisas asiáticas”, diz-nos Pedro Costa depois do momento surreal em que teve de pousar para uma fotografia com a contemplada. Entre os muitos apoiantes comerciais do festival não há um único nome português como se a ninguém tivesse ocorrido a oportunidade publicitária que constitui um evento destes.

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Reverter o olhar
A dedicação dos cineastas portugueses à sua arte mesmo perante cenários preocupantes de desinvestimento estatal parece ter sido uma das razões para a escolha do país. Mas essa decisão partiu também de um nome de origens. Taiwan (nome oficial: República da China) é também conhecida pela designação que os navegantes portugueses lhe deram ao avistar a ilha a caminho do Japão no século XVI: Formosa. O nome é amplamente conhecido em Taiwan e é, muitas vezes, a única associação que as pessoas têm a Portugal, algumas julgando erroneamente que os portugueses colonizaram Taiwan (apenas espanhóis, holandeses e japoneses o fizeram).

Para Kuo Ming-Jung, esta versão do nome é fulcral: “Naqueles tempos, o acto de dar um nome requereu que os portugueses viajassem através do oceano, vissem a ilha e decidissem depois de a verem que era ‘formosa’. Nesse sentido, para os taiwaneses, ver filmes portugueses é reverter o olhar, ver e decidir o que é bonito” hoje. Num ensaio sobre Pedro Costa incluído em Portuguese Cinema o programador Wang Pai-zhang observa: “Embora não possamos descrever Portugal como um país feio, definitivamente não corresponde aos critérios de beleza definidos por Hollywood e afins. Um tal país está destinado a encontrar uma beleza própria. É preciso explorar para encontrar beleza. A beleza começa com exploração e descoberta mas termina ou mesmo morre quando se lhe dá um nome. Em Taiwan, uma ilha marginalizada que também não corresponde a critérios convencionais de beleza, é um luxo, para nós, poder seguir um realizador tão alternativo, vê-lo, sem remorsos, explorar e aventurar-se para o oceano de beleza, à deriva cada vez mais para longe do cinema mainstream”.

A selecção dos filmes foi feita durante três viagens que Kuo Ming-Jung fez a Portugal. “Fui a responsável por decidir que filmes eram seleccionados, após consulta e ajuda de vários programadores, cineastas e staff do ANIM [Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, o centro de conservação da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema]”. Admite: “Não tinha muito conhecimento prévio de cinema português e fi-lo mais por curiosidade” mas “quanto mais filmes portugueses via mais me sentia atraída pelas abordagens melancólicas e reflexivas das memórias e vidas comuns”.

Para conseguir o impressionante programa, Kuo contactou instituições, produtoras e cineastas: “O ANIM para a maioria de filmes de arquivo, fomos direccionados para a NOS para obter algumas cópias restauradas DCP de filmes de Manoel de Oliveira, tivemos de contactar os realizadores de Uma Rapariga no Verão [Vítor Gonçalves] e Os Mutantes [Teresa Villaverde] para ter a sua autorização antes de garantir as cópias; a Agencia – Portuguese Short Film Agency [Agência da Curta Metragem] para a maioria das curtas, O Som e a Fúria para os filmes de Sandro Aguilar e de Miguel Gomes, Pedro Costa para todos os seus filmes, Rosa Filmes e Films Boutique para os filmes de João Pedro Rodrigues, e, via uma apresentação da Agencia, Gabriel Abrantes e A Mutual Respect Productions para as curtas desse autor”.

Se a escolha final é da responsabilidade última de Kuo Ming-Jung, os parceiros portugueses do festival fizeram sugestões e disponibilizaram cópias e outros materiais. Sara Moreira da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema contou ao Ípsilon, por email, como foi o envolvimento da instituição: “O primeiro contacto ocorreu em Setembro de 2014” e “em Fevereiro, a Directora de Programação do Festival veio ao nosso arquivo [ANIM] visionar um conjunto de filmes, alguns dos quais incluídos na programação final”, que foi “definida pelo festival”. Ao todo, “a Cinemateca disponibilizou 10 cópias do seu acervo, bem como materiais de apoio (listas de diálogos para apoio à tradução e legendagem, fotografias, fichas técnicas e sinopses).”

Também Salette Ramalho, da Agência da Curta Metragem, disse ao Ípsilon, por email, que foi contactada por Kuo em Setembro “para colaborar, com a programação de curtas-metragens, na organização deste grande programa”. Embora “a programação [do TFF] não se evidencie especificamente pelas curtas-metragens [...] dada a sua vitalidade e criatividade, e tendo em conta os autores envolvidos, o destaque ao formato curto neste programa era inevitável”. E acrescentou: “Graças aos seus orçamentos mais reduzidos e meios de produção mais ágeis, as curtas-metragens contribuíram, em grande parte, para a visibilidade do cinema português nos mais influentes festivais de cinema de todo o mundo nos últimos anos, bem como para o reconhecimento da sua qualidade.” A Agência sugeriu “uma lista de filmes chave e realizadores relevantes para um programa coerente com a história da cinematografia nacional dos últimos anos, e os programadores de Taipé elegeram aqueles que se conciliariam melhor com a sua audiência e linha editorial”.

Perguntámos a Kuo Ming-Jung se todas as diligências de trazer as cópias e cineastas a Taiwan tiveram algum apoio governamental de Portugal ou da União Europeia. Respondeu-nos: “Todos os custos incorridos para este programa foram cobertos pelo orçamento do Taipei Film Festival. Nenhum apoio financeiro de agências oficiais portuguesas ou da UE.” Recebeu, porém, “muitos apoios, sugestões e assistência dos cineastas, produtoras, festivais de cinema e agências de curtas.”

O esforço de Kuo é quase uma busca por uma miragem, essa de Portugal no seu cinema da qual se aproximou nas suas visitas ao país. Em Portuguese Cinema, Kuo recorda como foi essa busca por um cinema que nunca fora devidamente apresentado a Taiwan e sobre o qual encontrava poucas informações em inglês. Houve alguns momentos marcantes. No catálogo, conta a sua descoberta de toda uma história cinéfila portuguesa quando viu Outros Amarão as Coisas que eu Amei de Manoel Mozos (sobre João Bénard da Costa), cujos espaços “são parte do passado que marcou a cultura de cinema em Portugal [...]. Pensei para comigo, talvez a Cinemateca Portuguesa seja o melhor arquivo de cinema do mundo e este filme reflecte esse espírito”. É agora a vez de ela propagar esse amor ao público de Taiwan através dos filmes que programou.

Um enorme poster francês de Vai e Vem de João César Monteiro pode ser visto junto a imagens de homenagem a Hou Hsiao-hsien no cinema SPOT em Taipé, que funciona na antiga residência do embaixador dos EUA. Mistérios de Lisboa de Raoul Ruiz, Tabu de Miguel Gomes e até mesmo Amália de Carlos Coelho da Silva estrearam em Taipé em anos anteriores. Mas há conhecimento de cinema português entre o público e os críticos formosinos? Diz Kuo Ming-Jung: “Não propriamente. Acredito que apenas os cinéfilos mais ávidos consigam nomear Oliveira, Pedro Costa ou João César Monteiro como realizadores portugueses”. É por isso que a edição deste ano do Taipei Film Festival é tão significativa. “Este programa centrado no cinema português irá sensibilizar os públicos de festival em Taiwan”, acrescenta Kuo, referindo o livro que o festival editou para acompanhar a programação portuguesa. Mas reconhece: “Embora seja um grande evento de cinema em Taiwan, o TFF é apenas frequentado por um número limitado de pessoas. Aumentará o conhecimento de Portugal entre o público do festival, pessoas que acompanham eventos culturais e residentes em Taiwan mas não posso fazer declarações sobre a influência que este programa tenha sobre os taiwaneses em geral. Eventos culturais, no fundo, recebem uma atenção limitada e festivais de cinema não são excepção”.
 
Diálogos entre cinemas
Recorda Kuo Ming-Jung, no catálogo editado pelo festival: “Pergunto-me sempre como devo começar quando trabalhamos sobre o tema de uma cidade. Começamos pelos filmes ou pela história?” No caso português, essa relação era indissociável. “Percebi como a ditadura foi uma parte tão importante do passado da nação [portuguesa]. Embora tenha começado a minha jornada à procura dos melhores filmes, acabei-a com um melhor conhecimento da história da nação.” Taiwan, que viveu sob lei marcial durante décadas, de 1949 a 1987, compreenderá bem o que é viver sob um regime autoritário, um curioso ponto de contacto entre os dois lugares. Mas a história que une os dois lugares é também, como o próprio nome “Formosa” elucida, uma história de império – ou dos seus despojos. No caso de Portugal, os ecos de colónias passadas que vivem na Macau imaginada de João Pedro Rodrigues e João Guerra da Mata, e dos cabo-verdianos invisíveis que Pedro Costa busca em Lisboa. No caso de Taiwan uma história de séculos de colonização por diferentes potências, mas particularmente o período de 50 anos em que foi dominada pelo Japão e que continua a ser tão marcante para a identidade local. Comum a todos é a ênfase na memória. No caso de Costa, as pessoas com quem ele filma são, como referiu, “parte de uma humanidade esquecida que eu quero lembrar, lembrá-los e lembrar-me com eles, porque eles são muito esquecidos por todos os tipos de cinema”.

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Muito especificamente, A Última Vez que viu Macau partiu das memórias de infância de Guerra da Mata no território e concretizou-se na sua redescoberta, décadas depois, junto de Rodrigues. Também eles foram “filmar a memória”, ou memórias imaginadas. Foram em busca de lugares que já haviam mudado. Como “um puzzle” numa cidade que também o é, “perdemo-nos e encontrámos o filme”. Indo para fazer um documentário, acabaram por perceber que “a cidade lhes contava histórias”, que “podiam imaginar ficções a acontecer naqueles lugares”. Essa “ideia de Macau” ficou com eles e vive até em filmes que não filmaram lá, como Mahjong.

O Cinema Novo Taiwanês, conhecido internacionalmente sobretudo por autores como Hou Hsiao-hsien ou Edward Yang, foi também um de memória, e curiosos diálogos se poderão estabelecer entre “cinemas novos”. O português dos anos 1960s irá ocupa um lugar especial na programação deste ano do Taipei Film Festival. Em particular Os Verdes Anos de Paulo Rocha, exibido numa cópia restaurada e apresentado por Pedro Costa, é um filme que mereceu algum destaque, por exemplo, aparecendo na capa da edição de Junho do equivalente de Taipé da Agenda Cultural de Lisboa. Na página de Facebook do festival o filme é promovido com a actriz Isabel Ruth a ser comparada a Xiu Sufen, a actriz que protagonizou Dust in the Wind the Hou Hsiao-hsien, e Lisa Yang, que deu vida a Ming em A Brighter Summer Day de Edward Yang. Perguntámos a Kuo Ming-Jung o porquê desta fixação com Os Verdes Anos. Ela confessa que a ênfase no filme “foi totalmente" sua pois quando o viu notou "que a base da história é muito similar à de Dust in the Wind. A cena em que o protagonista chega à estação de comboios e está à espera de ser recebido pelo tio e depois é levado para a cidade por um estranho tinha tantas semelhanças com Dust in the Wind que tal se torna muito mágico e nostálgico para o público taiwanês. A caracterização de Isabel Ruth como a rapariga que acaba por corporizar os males da vida citadina e a perda de inocência pode ser vista tanto em Dust in the Wind como em A Brighter Summer Day. Talvez porque este tema é recorrente em quase todos os ‘cinemas novos’ de cada país, é um factor que faz com que o público taiwanês se sinta mais próximo do cinema português”.

Para Pedro Costa, “Os Verdes Anos criou um novo cinema em Portugal” e consegue continuar a tocar sucessivas gerações que o vêem. Faz uma detalhada introdução a Os Verdes Anos e a Mudar de Vida, que passaram em sessões contínuas em salas semicheias e onde se viam muitos jovens. Entusiasticamente, afirmou a importância de Paulo Rocha e chamou a atenção para aspectos como a música de Carlos Paredes. “Vão gostar deste filme – eu obrigo-vos a gostar!”, exorta ao público de Os Verdes Anos, que não parece precisar de incentivos. No final, alguém diz ao nosso lado que aquela história é de Lisboa mas podia perfeitamente ser de Taipé. Poucas horas depois, antes da sessão de Mudar de Vida, Costa alude às influências japonesas da obra e lembra um taiwanês que outrora conhecera e de quem costumava falar com Paulo Rocha. Edward Yang. “É para mim uma honra poder estar no país onde esse homem esteve um dia vivo”, diz.

Talvez o Taipei Film Festival faça com que Portugal passe também a significar para Taiwan, antes de tudo o mais, um país de cinema.

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