As novas gerações já podem conhecer a actriz Maria Barroso

O restauro recente de Mudar de Vida, o filme de Paulo Rocha, veio dar a conhecer às novas gerações o trabalho de Maria Barroso como actriz, cuja carreira, no cinema como no teatro, marcou uma época.

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Maria Barroso em Mudar de Vida, de Paulo Rocha DR
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Maria Barroso no documentário de Manoel de Oliveira, Lisboa Cultural Pedro Prista
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Maria Barroso com Joaquim Sapinho (à esq.) na sessão da Gulbenkian DR

No cinema, Maria Barroso teve uma filmografia curta mas extremamente significativa, ou não tivesse sido actriz de alguns dos maiores realizadores portugueses. A sua voz ouve-se em O Crime de Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães, dobrando a actriz Barbara Laage, e dois anos depois interpretou aquele que será o seu papel mais importante, a Júlia do Mudar de Vida.

Bastaria esse papel para garantir a Maria Barroso um lugar relevantíssimo na história do cinema português. A sua Júlia é uma personagem quase sacrificial, divida entre o amor pelo antigo namorado, regressado da guerra colonial, e o compromisso com o homem – irmão do primeiro – com quem entretanto casou. E Maria Barroso empresta à personagem uma verticalidade estóica e dorida, a fazer “corpo” com a terra e o mar (tudo se passa no Furadouro, numa comunidade piscatória), e domina a dimensão popular da personagem através duma elegância sem adornos, duma rudeza que é também uma extraordinária expressão da força interior, mas também da fragilidade, de Júlia. A cena do seu “confronto” com o primeiro homem (Geraldo Del Rey), entre o mar e as ruínas, é de antologia.

Foi o regresso recente às salas de cinema e a edição em DVD do filme de Paulo Rocha Mudar de Vida, em versão restaurada, que veio dar a conhecer às novas gerações o trabalho de Maria Barroso como actriz, cuja carreira, no cinema como no teatro, marcou uma época. Foi a 13 de Maio, no Cinema Ideal, em Lisboa, e a antiga primeira-dama esteve na sessão de estreia. 
Já no final do ano passado, Maria Barroso apresentara Mudar de Vida, na cópia ainda não restaurada, no ciclo
Harvard na Gulbenkian – Diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo, a convite do comissário, o realizador Joaquim Sapinho.

Sapinho lembrou-se da actriz, tanto pelo trabalho dela no filme como por razões afectivas e até familiares. Sobre Mudar de Vida, Sapinho cita em especial “a cena muda em que Júlia apanha carumas com o ancinho e em que se percebe que ela ainda ama o primeiro marido, mas que não o pode aceitar...”. “É uma cena de partir o coração, o momento mais extraordinário do filme”. E Sapinho lembra que ela era utilizada por António Reis, seu professor no Conservatório (e que foi o co-argumentista do filme de Paulo Rocha), como exercício de encenação muda.

O comissário do ciclo Harvard na Gulbenkian recorda ainda hoje a carga emotiva dessa sessão realizada a 13 de Dezembro, com a sala do Centro de Arte Moderna cheia, e que foi também uma homenagem a Paulo Rocha, falecido dois anos antes.

“A minha relação de amizade com Maria Barroso nasceu do meu trabalho com o Paulo Rocha”, revela Sapinho, acrescentando ainda que a actriz fora uma grande amiga do seu pai, José Gonçalves Sapinho, que foi deputado do PSD na Assembleia Constituinte e com ela trabalhou na comissão de Educação.

 

 

 

  


“Maria Barroso foi uma artista e uma cidadã extraordinária, que estava sempre a fazer a ponte entre a arte e a política”, nota Sapinho.

Depois de Mudar de Vida, apenas a vimos em filmes de Manoel de Oliveira, merecendo especial menção as suas participações em Benilde ou a Virgem Mãe (1975) – onde regressa ao texto de José Régio, agora na personagem da governanta Genoveva, depois de em 1947 ter sido a protagonista numa interpretação mítica no Teatro D. Maria II – e em Amor de Perdição (1978), onde apareceu a encarnar a abadessa de Monchique.

Nessa altura, a sua carreira no teatro já tinha ficado bem para trás, uma vocação que a jovem actriz tinha concretizado só depois de ter vencido as resistências paternas. A história é conhecida: Maria Barroso só conseguiu autorização dos pais para frequentar a Escola de Teatro do Conservatório Nacional depois de prometer empenhar-se também em tirar um curso “sério” (as aspas são nossas), que lhe garantisse o futuro. Foi assim que, depois da formação na escola onde foi aluna de Maria Matos e Alves da Cunha, se licenciou, no início da década de 50, em Ciências Histórico-Filosóficas. E mais tarde teria tirado também o curso de Direito – “queria defender os pobres, os desalinhados, os injustiçados”, disse em recente entrevista ao jornal i, a pretexto do seu 90.º aniversário –, não fora a oposição do marido Mário Soares, com quem casou em 1949, que não terá querido ter “concorrência” profissional dentro de casa.

Formada no Conservatório Nacional em 1943, Maria Barroso ingressou no ano logo a seguir no D. Maria II. “Representei quatro anos no Teatro Nacional com uma mestra admirável por quem tinha a maior consideração e respeito, Amélia Rey Colaço”, recordou a actriz em entrevista ao Diário de Notícias, em 2004, evocando esse início de carreira numa arte que então não colhia os favores da família. “O meu pai só me deixou fazer o curso de Arte Dramática do Conservatório com a condição de eu tirar um curso superior… e fui para Letras”.

No Teatro Nacional, entrou em quase duas dezenas de peças, mas aquelas que ficariam na história, e que a própria actriz destacava, foram a já citada Benilde ou a Virgem Mãe, em 1947, e A Casa de Bernarda Alba, de García Lorca, uma produção de 1948 na qual contracenou e foi dirigida por Palmira Bastos.

Na peça de José Régio, esteve em cena com Augusto de Figueiredo (que voltaria também a contracenar com a actriz na versão cinematográfica de Manoel de Oliveira). A criação de Maria Barroso tornou-se mítica, também por razões políticas, tendo coincidido com a afirmação do MUD – toda a juventude e público de esquerda acorreu ao D. Maria II a aplaudir a actriz.

O mesmo efeito teve a sua prestação em A Casa de Bernarda Alba, estreada em Janeiro de 1948. “Foi uma das últimas peças que representei, fazia a filha rebelde, claro, a Adela. Muitas vezes, os censores eram ignorantes e não se apercebiam do significado das coisas – como da personagem Bernarda Alba, a mãe, que encarnava a prepotência e era interpretada pela grande actriz Palmira Bastos”, recordou Maria Barroso em entrevista à revista Única/Expresso (2009). “Andámos a representá-la pelo país. Quando o fizemos em Coimbra, estava lá toda a intelectualidade que era contra o regime – e havia uma cena muito emotiva, que terminava com a Adela aos gritos. No terceiro acto, essa figura dizia, quebrando a vara que a mãe trazia sempre com ela: ‘Veja o que eu faço à sua tirania.’ O teatro ia vindo abaixo com as palmas, bateram, bateram e começaram a chamar pelo meu nome... Eu era muito tímida, mas Palmira Bastos levou-me à frente, e a certa altura atiraram para o palco uma pasta com as fitas da Faculdade de Letras e uma capa. Foi uma noite lindíssima, foi a noite de teatro mais bonita que tive”, acrescentou a actriz.

Sobre essa representação em Coimbra escreveu no PÚBLICO o filósofo Eduardo Lourenço, na passagem do 90.º aniversário da actriz: “Dos meus dias de Coimbra guardo um momento de rara emoção e surpresa. Emoção minha e de uma parte da nossa geração que acorrera ao Teatro Avenida para ouvir, festejar, partilhar a juvenil exaltação de uma heroína da Casa de Bernarda Alba que nos visitava. Muita água passou sob as pontes do Mondego e do mundo. E um pouco de esperança e de rebeldia que essa jovem e ardente artista então incarnava”.

Mas o sucesso da representação da peça de Lorca em Coimbra teve consequências imediatas, e a companhia foi proibida pela censura do regime do Estado Novo de a apresentar a seguir no Porto. Maria Barroso faria ainda no D. Maria II a peça de Joaquim Paço d’Arcos, Paulina Vestida de Azul. Mas, no final das férias de 1948, a actriz foi informada de que a sua carreira no Teatro Nacional estava terminada. “Tenho muita pena, mas não me deixam contratá-la de novo”, disse-lhe Amélia Rey Colaço. Foi “uma coisa terrível. Dizia aos meus amigos: ‘Lutei pela dignificação do teatro, procurei representar o melhor possível e puseram-me fora!’ No ano seguinte casei e fui fazer outras coisas”, recordou Maria Barroso na citada entrevista.

 

 

 

  

O regresso ao teatro haveria de acontecer, de forma breve, apenas na década de 60, quando trabalhou com Jacinto Ramos no Teatro do Nosso Tempo, no Villaret, em O Segredo, de Michael Redgrave, e em Antígona, na versão de Jean Anouilh. <_o3a_p>


 

 

 

  

O historiador de teatro Vítor Pavão dos Santos assistiu às suas representações nestas peças, numa altura em que a actriz transportava consigo ainda “a aura dos sucessos na Benilde e na Bernarda Alba”. Recorda “a grande presença” em palco da actriz, que tinha “uma voz muito bonita e uma cara muito expressiva”. <_o3a_p>


 

 

 

  

Já Jorge Silva Melo só viu Maria Barroso em Antígona, em 1965, e recorda-se também do “grande triunfo da actriz”. Mas o director e encenador dos Artistas Unidos já não conseguiu vê-la de novo dois anos depois, a fazer A Voz Humana, de Jean Cocteau, no final de um recital de poesia no Teatro São Luiz. “Eu tinha comprado o bilhete para o segundo dia do recital, mas quando cheguei ao teatro, que tinha a sala esgotada, a censura tinha proibido o espectáculo. Foi chocante”, recorda.<_o3a_p>


 

 

 

  

Melhor sorte teve o ex-director do Museu do Teatro, que conseguiu assistir a esse momento único. “Era como se o espectáculo nunca tivesse existido”, diz Vítor Pavão dos Santos, dizendo que “a censura proibiu o anúncio do espectáculo nos jornais”. Mesmo assim, o São Luiz encheu, e no dia seguinte já não foi autorizado a abrir.<_o3a_p>


 

 

 

  

“Foi pena que ela não tivesse querido representar mais”, lamenta Vítor Pavão dos Santos, referindo-se principalmente ao abandono dos palcos após a saída do D. Maria II. E acrescenta que “Amélia Rey Colaço, que gostava muito da Maria Barroso, moveu mundos e fundos para que ela trabalhasse noutros palcos. Mas ela ficou muito ofendida e não quis”.


Após as curtas experiências dos anos 60, Maria Barroso não mais regressou ao teatro, mas não abandonou os palcos, continuando a fazer sucessivos recitais de poesia em noites de oposição à ditadura do Estado Novo. “Gostava muito de dizer poemas, sobretudo do Novo Cancioneiro, que, como se sabe, tinha muitos textos revolucionários de Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca... Ia com o coro de Fernando Lopes-Graça a Almada, ao Barreiro, onde havia as sociedades operárias, e ficavam todos muito electrizados”, recordou a actriz na entrevista ao Expresso. <_o3a_p>
 

 

 

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