Ou a ecografia, ou a factura

Esta revisão da lei do aborto está fraquinha. Precisava de ir para a incubadora. Forçar as mulheres a assinarem a ecografia é um truque giro, mas não chega para atormentar. Passados cinco minutos, a mulher já esqueceu. Autógrafo, sim, mas com dedicatória personalizada. Por exemplo: “Fruto de esquecimento de pílula” ou “Resultado de falta de atenção nas aulas de Matemática, que redundou em engano nas contas do período fértil”.

Mesmo assim, é preciso mais do que uma rubrica para amesquinhar como deve ser. Falo por experiência própria: nunca me angustiei nas sessões de autógrafos do meu livro de crónicas. Como eu, há imensa gente que não tem problema em assinar os abortos que fazem. Aliás, até há gente que não se importa em assinar abortos que não fazem: José Sócrates fartou-se de assinar projectos de abortos imobiliários que não projectou.

Para ser eficaz, a lei tem de ir mais longe. Nomeadamente, ir tão longe quanto o Ikea mais próximo, na medida em que devia obrigar a mulher a deslocar-se a um desses estabelecimentos e adquirir um martelo, um amigo do senhorio e uma moldura, para poder pendurar a ecografia na sala de visitas. Para agravar o castigo, o legislador pode, inclusive, determinar que a ida ao Ikea seja a um domingo, que é quando a loja está mais cheia.

Às reincidentes, a lei pode impor ecografias tipo passe, para ter na carteira. Ou, em alternativa (mostrando ser uma lei moderna), decretar o uso da ecografia como papel de parede do telemóvel.

O objectivo é obrigar a mulher a olhar tantas vezes para a ecografia que, por osmose, se transforme numa técnica de raio-x. E, também, para que se arrependa, para sempre, daquilo que fez. Por princípio, concordo que as pessoas sejam responsabilizadas pelos seus actos. Mas, a bem da equidade, se é para instituir esta regra, tem de se alargá-la a outras áreas da sociedade portuguesa e obrigar quem votou na maioria a ter uma fotografia de Passos Coelho e de Paulo Portas na sala. De certeza que contribuía para um uso mais responsável do voto.

Agora, o “Movimento pelo direito a nascer” tem de escolher. Ou bem que quer incomodar a mulher com imagens do feto que abortou, ou quer que ela pague o serviço médico. As duas é que não. Senão, é como o polícia de trânsito que pergunta: “Sabe porque é que o mandei parar?” e que a seguir dá uma prelecção condescendente sobre segurança rodoviária, para no fim multar à mesma. Não, não, senhor agente. Ou o sermão ou a coima. Ou paternalismo, ou consequência. Ou emoldura-se a ecografia, ou emoldura-se a factura. Querer juntar o pagamento à humilhação é um paradoxo. Literalmente, pois passa a ser uma taxa moderadora radical.

O “Movimento pelo direito a nascer” que decida se pugna “pela vida” ou “pelo equilíbrio financeiro do serviço nacional de saúde”. Calculo que escolha a vida. Os seus militantes gostam tanto da vida que não lhes chega viver a sua, querem meter-se na das outras pessoas.     

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