Insolvência fortuita, dolosa (ou fraudulenta)? Uma velha questão não resolvida

Como é do conhecimento geral, quando uma empresa não tem possibilidade de liquidar pontualmente os seus compromissos vencidos perante os credores encontra-se insolvente. Mas nem todos percebem este simples conceito, ou então, talvez por conveniência, fazem-se de desentendidos. Se os gestores empresariais forem diligentes e responsáveis, na posse de informações privilegiadas sobre a incapacidade de solvência da empresa que gerem, devem por sua iniciativa apresentar-se à insolvência. Infelizmente, muitas vezes não é assim.

Quer seja pelo estigma social que uma insolvência ainda provoca, pela falta de capacidade de discernimento entre dificuldades transitórias de tesouraria e modelos de negócios considerados economicamente inviáveis, ou porque pura e simplesmente lhes convém, muitos gestores (se é que lhes podemos chamar gestores, pois em Portugal, a meu ver, temos muitos patrões, alguns empresários e poucos gestores), só muito tardiamente, apresentam as suas empresas à insolvência. Muitas vezes preferem que seja um credor a tomar essa iniciativa, numa aposta futura ao recurso a uma desculpa de vitimização. Fica melhor referir que determinado credor foi quem pediu a insolvência, fazendo desse credor o culpado da situação, em vez de encarar de frente a realidade. Felizmente, ainda existem gestores que de uma forma conscienciosa visionam corretamente o problema e em devido tempo enfrentam com dignidade uma insolvência.

Como só tardiamente é que a empresa entra num processo de insolvência, os passivos avolumam-se e muitas vezes os ativos vão-se, deliberadamente dissipando, numa clara situação de fraude para com os credores. Estes, perante legítimas expectativas de receber o que lhes é devido e como não estão na posse de toda a informação, vão, na medida do que lhes é possível, concedendo crédito adicional à empresa, sem que se apercebam de que estão a entrar num círculo vicioso do qual sairão prejudicados.

Perante uma tardia entrada nos tribunais competentes do processo de insolvência, as vantagens que tal medida pode apresentar para os credores vão sendo progressivamente esfumadas. O índice de risco para os credores aumenta, as ações executivas contra o devedor continuam e a probabilidade de uma possível recuperação da empresa com vista à satisfação dos créditos diminui. O adiar, por parte dos gestores, do que é inevitável e irreversível, nestes casos, só demonstra, no mínimo, uma manifesta falta de respeito (ou até mesmo má-fé) para com os diversos credores.

Mais tarde, a insolvência vai ter de ser classificada como culposa ou fortuita. Muitas insolvências são originadas por motivos fortuitos, como sejam as motivadas por situações em que a empresa e os seus gestores não dominam diretamente e que, por esse facto, não podem ser considerados culpados.

Mas outras insolvências são culposas. As situações mais comuns que podem provocar culpa numa insolvência são o prosseguir no interesse pessoal dos gestores ou de terceiros uma exploração deficitária, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas, e a deslocação prévia de património da sociedade.

Até pode ser difícil provar quando existe particular interesse em manter no ativo uma exploração deficitária, porém, quanto à celebração de negócios ruinosos em proveito dos gestores ou no de pessoas com eles relacionadas e à deslocação prévia de património da sociedade, é relativamente mais fácil obter as tão necessárias provas para culpabilizar a insolvência. Estas duas últimas situações deixam pistas contabilísticas e financeiras que com alguma investigação e vontade acabam por ser detetadas.

Muitas vezes fica a dúvida se, por exemplo, uma deslocação patrimonial prévia à insolvência é casual ou foi efetuada com o intuito de preparar a insolvência, e com isso provocar uma diminuição da massa insolvente, prejudicando a repartição do produto dessa massa pelos titulares dos créditos.

Vendas de património pelo seu justo valor (insuspeitamente avaliado) e com a entrada nos cofres da sociedade dessas importâncias não podem provocar culpa na insolvência. Contudo, quando assim não acontece, é necessário investigar até que a verdade seja apurada, em nome da salvaguarda dos legítimos interesses dos credores e da economia em geral.

Cabe ao administrador judicial apresentar um parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre factos que considere relevantes e que deverá incluir a formulação de uma classificação para a insolvência, a qual irá para o Ministério Público para que este se pronuncie.

Perante o aumento dos processos de insolvência, principalmente nos anos de 2011, 2012 e 2013, poderemos afirmar com toda a certeza que todos os casos foram corretamente classificados como fortuitos ou culposos? Se sim, poderemos sentir orgulho, dizer que o sistema funcionou e, por inerência, deverá continuar a funcionar. Caso contrário, se existiram processos de insolvência classificados como fortuitos, mas onde efetivamente houve injustificado desvio prévio de património ou celebração de negócios ruinosos por parte do devedor em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas, então há quem tenha lucrado, e é fácil de identificar, sendo que naturalmente os credores não o foram.

Os credores foram antes de mais vítimas de dupla fraude. Foram defraudados por não se verem ressarcidos das dívidas e foram ainda defraudados pelo sistema, que em primeira instância os deveria proteger.

Por outro lado, figura de magna importância na insolvência é o administrador judicial, na medida em que tem um poder quase absoluto sobre um património, por vezes valioso, que é entregue à sua administração. Se felizmente são muitos os casos de superiores atuações dos administradores judiciais em prol da defesa dos credores, levando inclusive à recuperação de empresas, existem casos em que aparentemente não é assim.

A comunicação social tem sido fértil em relatar casos de administradores judiciais que alegadamente não desempenham de forma mais correta as funções que lhes foram confiadas e que, por não se conhecer em profundidade os processos, nos abstemos de comentar.

Em todas as profissões existem os que cumprem e os que se aproveitam das fragilidades do sistema. Neste caso concreto, quem fiscaliza a atuação dos administradores judiciais? Será a comissão de credores? Será o Ministério Público? Serão ambos? Creio que vale a pena pensar nisto.

Em superior defesa dos seus créditos, a comissão de credores deveria ter uma atitude mais proativa, não esquecendo que esta representa a totalidade dos credores, e ter bem presente que estes são os únicos que importa defender, para que os credores da insolvente não sejam vítimas de fraude em triplicado.

Associado do Observatório de Economia e Gestão de Fraude

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