Há uma luz que nunca se apaga nos Jardins Efémeros

O piano voador de Lubomyr Melnyk, as intervenções urbanas de ±MaisMenos± ou uma Casa do Sonho para estimular a imaginação nos mais novos foram momentos luminosos nos Jardins Efémeros, que começaram sexta-feira em Viseu e se prolongam até domingo.

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A intervenção improvisada do artista urbano ±MaisMenos± aproveitou a actualidade do referendo na Grécia DR
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A Casa do Sonho é um espaço dedicado às crianças Francisco Rodrigues
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O ucraniano Lubomyr Melnyk teve um notável desempenho ao piano na repleta catedral de Viseu Francisco Rodrigues
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Rui Calçada Bastos "Dismantle"
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Centro histórico de Viseu

A Praça D. Duarte, no centro histórico de Viseu, está diferente desde sexta-feira, dia em que teve início a 5ª edição do evento multidisciplinar Jardins Efémeros, transformada num jardim barroco com estátuas, no meio das quais o público é convidado a passear.

Mas este domingo o espaço estava ainda mais misterioso, com uma intervenção improvisada do artista urbano ±MaisMenos±, realizada durante a noite, que aproveitou a actualidade do referendo na Grécia, para deixar a sua assinatura em algumas das estátuas do jardim.

Agora o jardim parece aludir à Grécia antiga, fazendo eco com a actualidade europeia. É uma boa metáfora para um evento que se prolonga até ao próximo domingo e que, nos últimos cinco anos, tem celebrado a cidade através das práticas artísticas, contribuindo para a redescoberta de espaços desactivados, num desafio para um outro olhar sobre a urbe e a relação com o espaço público.

Este ano o mote é a luz. Uma luz que se reflecte no concreto, principalmente nas manifestações de artes visuais, mas que tem estado poeticamente presente noutros momentos nos primeiros dias do acontecimento. Por exemplo na luminosidade hipnótica transmitida pelo notável desempenho ao piano do ucraniano Lubomyr Melnyk, na repleta catedral de Viseu, na noite de sábado. 

O ano passado, no mesmo lugar, um outro pianista (Nils Frahm) havia dado um recital de eleição, mas Lubomyr não lhe ficou atrás. Durante muito tempo remetido ao esquecimento, nos últimos anos o músico e compositor de 66 anos tem tido um aumento de visibilidade, em parte graças à sua técnica invulgar (que o próprio apelida de “composição contínua”), com notas rápidas e complexas, explorando a repetição e o ritmo, criando um ambiente encantatório.

Tocou quatro longas peças – a última, pertencente à série Windmills, com 40 minutos – que foram antecipadas por comentários seus. Na introdução de I love you, que teve direito a acompanhamento vocal feminino de Leonia, disse que mais do que o amor romântico o que o motivava era o amor universal e essa presença humanista sente-se na sua personalidade e música, ondas de som que evocam intempéries ou clarões de luz, tudo fazendo parte do mesmo corpo de esperança. No final, a catedral de Viseu, emocionada, rendeu-lhe enorme aplauso.

A ideia de viagem esteve muito presente nos momentos musicais. Na sexta-feira, ao ar livre, no adro da Sé, foi isso que se sentiu com os portugueses HHY & Macumbas, colectivo de configuração variável, que propõe uma sonoridade ritualista, capaz de agregar imensos elementos à sua volta, devolvendo-nos uma massa sonora de apelo físico. Música hipnótica com qualquer coisa de primitivo, mas profundamente contemporânea.  

De forma diferente, com um som mais expansivo, foi isso que também se sentiu no mesmo lugar, na noite de sábado, com outros portugueses, os Gala Drop, que propuseram uma deambulação pelo rock mais psicadélico e pelas electrónicas com um olhar para África.

Para matérias mais experimentais foi possível desfrutar, no Museu Nacional Grão Vasco, da performance sonora da sueca Quiltland, explorando uma electrónica de ambientes cinemáticos, ou da dupla inglesa Howlround, que depois de terem estado em Viseu na última semana a recolher sons concretos, os devolveram à cidade em forma de música manipulada através de velhas máquinas de fita analógica.

Uma grande festa dançante proporcionaram DJ Maboku, Puto Anderson e DJ Ninoo, todos eles afectos à editora Príncipe, inundando o claustro maior do museu Grão Vasco com sonoridades afro-house. Mas nem só de música vivem os Jardins Efémeros.

O acontecimento tem crescido de forma sustentada, suscitando a curiosidade dos locais, que ocupam de forma festiva toda a zona histórica da cidade, e atraindo cada vez mais pessoas do resto do país, ao mesmo tempo que também vai fomentando novos públicos.

Em parte foi isso que levou à criação de um espaço dedicado às crianças, a Casa do Sonho, situada num edifício de dois andares do número 94 da rua do Comércio. A Casa foi construída parcialmente pela comunidade que contribuiu com material infanto-juvenil para ler, brincar ou jogar. Quando a visitámos inúmeros pais e filhos aglomeravam-se à porta. Lá dentro, muitas salas decoradas de forma engenhosa, acolhiam momentos lúdicos ou educativos, com o desafio de fomentar o pensamento e a imaginação nos mais novos.

Estímulos por estes dias em Viseu não faltam. A arte está em todo o lado. No Adro da Sé vislumbra-se a instalação  Lar-Circu-Lar do artista e músico Pedro Tudela, relacionando-se e complementando-se ao espaço, enquanto a antiga garagem Renault no Largo Santa Cristina – que também acolhe concertos – é motivo para mais uma intervenção de ±MaisMenos±, que ali inscreveu a frase We Are Not A Loan.

Na funerária D. Duarte, o artista Rui Calçada Bastos contribui com a vídeo-instalação Dismantle, enquanto Anita Ackerman propõe uma peça interactiva, com um espelho concêntrico a ocupar o centro de uma sala escura. Pelo contacto da fonte da luz com o corpo, o espectador torna-se também ele coreógrafo da peça.

No Museu Nacional Grão Vasco, com curadoria de Miguel Von Hafe Pérez, está uma exposição colectiva (Moderno & Medieval Camuflado), que trabalha a partir da actual desordem civilizacional para construir visões alternativas mais luminosas, cobrindo um arco temporal de mais de meio século, de Mário Cesariny à mais recente produção de Miguel Leal, com passagens por Álvaro Lapa, Eduardo Batarda, Helena Almeida, Pedro Cabrita Reis ou Susanne Themlitz. 

Em toda a zona que envolve o centro histórico se encontram actividades dos Jardins Efémeros. Dobra-se uma esquina e deparamo-nos com um mercado. As oficinas proliferam. O cinema vê-se ao ar livre. O teatro, a dança  e as exposições acontecem em lugares inusitados. Vive-se e discute-se a cidade. E até domingo ainda muito existe para experimentar com nomes como Holly Herndon, Eli Gras, Puce Mary, Caterina Barbier ou Trans-Aeolian Transmission.

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