Relatos de um futuro que não o foi

Reincidindo no trabalho da Mala Voadora com o autor inglês Chris Thorpe, Your Best Guess forja histórias para objectos que documentam uma realidade que não aconteceu. Primeiro momento do programa Uma Família Inglesa, a continuar em Novembro.

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O dramaturgo inglês Chris Thorpe e Jorge Andrade, da Mala Voadora

Há uns anos, pouco importa quantos, houve uma final de uma competição europeia de futebol, pouco importa se Taça UEFA ou Liga Europa, em que participou uma equipa de Manchester, pouco importa se City ou United.

O que importa verdadeiramente é que o dramaturgo inglês Chris Thorpe estava à porta de um pub nessa noite a conversar sobre qualquer coisa com um amigo. E aos dois apareceu então um vendedor de rua, com uma sacada de t-shirts cujo valor de mercado acabara de se afundar irremediavelmente. Jogando com as probabilidades, o vendedor saiu à rua com dois lotes distintos de t-shirts, cada um celebrativo de uma das duas equipas finalistas como vencedora. Depois de dar a previsível vazão aos materiais relativos aos vencedores confirmados pela realidade, dirigiu-se ao pub com os despojos de uma possibilidade de futuro que não fora confirmada.

“Acho que isso ficou comigo”, lembra Chris Thorpe, “a ideia de que a t-shirt da equipa perdedora se torna totalmente inútil quando o futuro acontece.” A ideia foi-o inquietando durante anos, mantida em carteira à espera de um contexto em que pudesse crescer para lá deste episódio solto. Numa troca de ideias com Jorge Andrade, da Mala Voadora, tornou-se claro que o pretexto da sua residência artística nas instalações da Mala no Porto pedia que finalmente ganhasse vida, e que funcionasse como a ponta de um novelo de pequenas histórias encadeadas em torno desta “classe específica de artefactos que têm um lugar muito especial no mundo porque são uma aposta num determinado futuro que não acontece, não validando o artefacto – e que assim se torna um documento de um universo alternativo”.

Esse mote inicial deu origem a uma série de narrativas que tanto podem versar a relação emocional com bilhetes para concertos que nunca aconteceram (devido ao suicídio de uma estrela de rock), a preparação de um atentado terrorista falhado, a história de um pai que forja a carta despedida da mãe para os filhos quando um acidente a coloca num estado comatoso (e que, devido ao desfecho, nunca chega a ser lida) ou a réplica de uma aldeia (inspirada na Aldeia da Luz) construída devido à abertura de uma barragem e cuja ocupação é depois atribuída a forasteiros. Por detrás, corre, no entanto, um dispositivo que traduz, em certa medida, “a forma como os hedge funds [fundos de alto risco] funcionam – a aposta num futuro incerto que explora a nossa realidade económica e emocional”. Mas também uma ideia ligada ao próprio dispositivo teatral, de aposta do público num desfecho quando uma peça acontece em palco. Há em Your Best Guess, de facto, um subtexto de como, colectivamente, vivemos suspensos em “palpites sobre relações, economias, preparação para catástrofes, ataques terroristas, guerra, todo um investimento de esforços num futuro que queremos que aconteça mas para o qual não há garantias de que venha a acontecer”. Toda uma lógica de tentativa de controlo dos acontecimentos e de menorização do imprevisto, mas também de esperança e de investimento na tentativa de confirmar essa aposta.

A história inicial das t-shirts levaria também Thorpe e Andrade (os dois intérpretes) a empreenderem uma investigação sobre o destino real destes materiais, encontrando-lhes o paradeiro. “Fomos pesquisar sobre o futebol americano”, conta Jorge Andrade, “e descobrimos um esquema nas t-shirts. Para terem o selo nacional oficial há o compromisso de não poder abrir as caixas das equipas que perdem porque senão são procuradas por coleccionadores e atingem preços elevadíssimos. Então enviam as t-shirts para África ou para a Índia.” Essa prova de um passado que podia ter acontecido acaba então por encontrar eco numa outra realidade alternativa. Se para as crianças que recebem as t-shirts não há razão para não acreditarem que vestem a roupa de vencedores, em simultâneo aquilo que lhes é dito subtilmente é que pertencem a uma outra realidade, na qual o vencedor de um campeonato de futebol americano pode ser irrelevante, mas sobre a qual se pode igualmente derramar uma mentira.

Uma Família Inglesa
Your Best Guess, com estreia a 3 e 4 de Julho, na Galeria Municipal Almeida Garrett (Porto), e imediata passagem de 7 a 11 de Julho para a Culturgest (Lisboa), no âmbito do Festival de Almada, é o produto de uma primeira residência artística do programa Uma Família Inglesa, com que a Mala Voadora pretende reforçar os laços que unem naturalmente a companhia à cena teatral britânica. “Esse programa vai ser lançado mais tarde, ainda no contexto desta residência, mas o Chris era o convidado inicial óbvio para fazer uma espécie de aquecimento”, explica Vânia Rodrigues, produtora da Mala Voadora. A ligação da companhia a Thorpe tem já vários capítulos anteriores, com as criações conjuntas de Overdrama, Dead End, Casa e Jardim, What I Heard About the World e Projecto Paraíso, desde que se criou uma afinidade natural entre a Mala Voadora e o colectivo Third Angel que os juntou pela primeira vez.

“Queremos convidar o Chris e outros artistas ingleses que têm muito sucesso internacional mas que estão completamente ausentes do panorama artístico portuense e, nalguns casos, mesmo nacional”, acrescenta Vânia Rodrigues. Uma dessas presenças já asseguradas para o programa bienal será a dos Third Angel, precisamente, cujo mentor Alex Kelly apresentará em Novembro, por altura do segundo aniversário da Mala Voadora Porto e do lançamento de maior fôlego de Uma Família Inglesa, o seu solo 600 People. A ocasião deverá prolongar-se por cinco dias e acolher igualmente a 100ª representação de What I Heard About the World, o solo Confirmation, com que Chris Thorpe foi distinguido no festival Fringe, de Edimburgo, assim como um ciclo de cinema comissariado pelo dramaturgo e o lançamento do livro com o texto de Your Best Guess. Fazendo jus ao conceito que obcecou Chris Thorpe, é possível que, para além de algumas peças curtas que possam fazer sentido juntar-se, Your Best Guess apareça numa versão diferente daquela que veremos em palco, incluindo vários excertos que, apesar de escritos, foram deixados cair nesse poço sem fundo dos despojos do que poderia ter sido. A fixação em texto de uma peça alternativa que não aconteceu.

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