Aprender com os erros do passado

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Aprender com os erros, recomenda Dominique Strauss-Kahn, o antigo director-geral do FMI, a propósito da Grécia. “O FMI cometeu erros e estou disposto a assumir a minha parte de responsabilidade”, escreve numa mensagem divulgada sábado na Internet. Lamenta que os erros se continuem a repetir. “A minha proposta é que a Grécia não receba nenhum novo financiamento da UE e do FMI, mas que beneficie de uma grande extensão da maturidade e até de uma redução maciça da dívida.”

Diz outra coisa sensata: “Forçar os gregos a ceder criaria um precedente trágico para a democracia europeia e poderia pôr em marcha uma incontrolável reacção em cadeia.”

A mais reveladora confissão é outra: “O FMI subestimou a profundidade das fraquezas institucionais da Grécia.”

Se os dirigentes europeus se tivessem dado ao cuidado de ouvir historiadores, economistas e politólogos, gregos ou outros, teria ouvido, logo em 2010, um diagnóstico unânime: “O problema da Grécia não é económico. É político e cultural.” Tem a ver com o funcionamento das instituições.

A miopia das “troikas
Por miopia, a UE e o FMI associaram a crise grega às crises da dívida em Portugal, na Irlanda, em Espanha ou na Itália. A crise parece a mesma mas na Grécia tem uma natureza distinta. O equívoco economicista da UE e do FMI criou uma cortina de fumo, desviando a atenção do “problema grego” para a “terapia do problema”. A UE não teve em conta o carácter singular do Estado e da sociedade gregos. Sem Estado, não se reforma. Sem reformas, a austeridade apenas fustiga a população sem um horizonte de esperança. E os programas das “troikas” passam a ser o “jugo estrangeiro”.

Para receber os fundos, os governos de Atenas começaram por fazer cortes drásticos na despesa. Mas resistiram a pôr em prática as “reformas estruturais” porque estas encontravam poderosas resistências políticas e sociais. A UE não percebeu que não tinha um interlocutor credível. A decisão de fazer ou não as reformas cabe aos gregos. À UE cabe tirar as consequências.

A Grécia não tinha, e não tem ainda, um Estado moderno. Era um Estado clientelista, com um aparelho fiscal risível e que obedecia à lógica da “despesa sem imposto”, reproduzindo a herança otomana da “economia de pilhagem”, na expressão do historiador Nicolas Bloudanis. Nos otomanos, a pilhagem era fruto de expedições militares. Na Grécia assentava — desde a independência — nos empréstimos estrangeiros.

Já se escreveram páginas inteiras sobre o “sistema grego”: um Estado tentacular, uma administração pletórica e incompetente, centenas de profissões privilegiadas e protegidas, uma endémica corrupção. Estado tentacular mas débil, refém dos grupos de interesses e incapaz de se reformar: para os velhos partidos, o Pasok (socialista) e a Nova Democracia (conservadora), fazer reformas que ferissem os interesses das suas clientelas seria um hara-kiri eleitoral.

Houve quem as tentasse fazer. Em 2001, depois da entrada no euro, o socialista Costas Simitis lançou um programa de “modernização económica e social” duma estrutura “clientelista, estatista e improdutiva”. Tentou tocar no sistema de pensões, celebrizado pela má gestão: provocou uma revolta no partido e maciças manifestações nas ruas. Perdeu as eleições seguintes.

O Pasok não abdicou do nacional-populismo. E a prática dos conservadores da Nova Democracia era a mesma dos socialistas. Até ao colapso financeiro de 2009.

A cultura política
A integração europeia teve um efeito positivo e perverso. A Grécia tornou-se mais moderna e rica. Por outro lado, a abertura da torneira dos empréstimos não só fez crescer o clientelismo como agravou na sociedade a cultura da “despesa sem imposto”. Os gregos, que dispunham de invejáveis regalias sociais, tinham razões para gostar do sistema.

Esta é uma das raízes do grande equívoco da vitória do Syriza. Alexis Tsipras soube criar a grande expectativa de um “regresso à idade de ouro”. Denunciou, é certo, a corrupção e o clientelismo. Há também dentro da constelação Syriza uma forte corrente que defende a saída do euro, uma espécie de autarcia socialista e uma viragem das alianças, privilegiando a Rússia.

Mas a consequência prática — a que interessava aos eleitores — era outra. Resume o historiador Stathis Kalyvas: “Dado que o Syriza se opõe a muitas das reformas estruturais que são necessárias, (...) a aplicação do seu programa exige nada menos do que um compromisso da UE em financiar permanentemente os crescentes défices. Isto não é realista.”

Não é realista mas é apreciado. Mais de 70% dos gregos defendem a permanência no euro, enquanto 60% aprovam a atitude intransigente de Atenas nas negociações no Eurogrupo.

Por trás da “cultura negocial” do Syriza, que alguns olham como “irracional”, perfila-se a memória do socialista Andreas Papandreou, que governou a Grécia entre 1981 e 1990. Triunfou graças à capacidade de arrancar fundos europeus. Tribuno populista, não hesitou em usar a chantagem geopolítica — como abandonar a NATO — para forçar a mão a Bruxelas.

O Syriza partilha algo desta cultura. Isolado na Europa, o governo grego recorre a duas ameaças. A primeira é o eventual “efeito catastrófico” do Grexit para o futuro da euro e da UE — encobrindo a verdadeira catástrofe social e económica a que a Grécia se expõe.

O historiador britânico Mark Mazower, especialista da Grécia contemporânea e que durante algum tempo simpatizou com o Syriza, aponta a outra arma: “A derradeira esperança de Tsipras reside na geopolítica — explorando o medo ocidental de empurrar a Grécia para a órbita de Vladimir Putin, entregando-lhe parte dos Balcãs.” Mas estes receios têm um limite: não impressionam os eleitores alemães, por muito que “tirem o sono” a Merkel e Obama (ver PÚBLICO de domingo). Não esqueçamos que a coligação de Atenas une extrema-esquerda e extrema-direita.

A Grécia tem uma forte tradição nacionalista e, sobretudo, uma mitologia da resistência ao “inimigo externo”, neste momento representado pela UE que, na linguagem de Tsipras, quer “humilhar a Grécia”. Por outro lado, a esquerda herdeira do comunismo grego tem uma cultura de “derrotas heróicas” (Theo Angelopoulos) que a incita a preferir a vitimização do passado ao compromisso com a realidade no presente. A vitimização é, de resto, património histórico dos gregos — vítimas de otomanos, alemães, ingleses, americanos e, agora, da UE.

Que quer Tsipras com o referendo de domingo? A ruptura com o euro, atear uma febre nacionalista contra o inimigo estrangeiro, reforçar o seu poder ou é uma jogada de póquer em que joga a própria sobrevivência política para depois se vitimizar — ou tudo ao mesmo tempo? É arriscado responder.

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