Tsipras quer que a Grécia pare de tomar veneno

O tratamento a que a UE quer submeter a Grécia não é um tratamento, mas um envenenamento. Lento e mortal.

Uma das coisas mais surpreendentes nos acontecimentos dos últimos dias em torno da erradamente chamada “crise grega” (que é, sempre foi e continuará a ser a “crise do euro”) foi o choque do FMI e dos eurocratas perante a decisão da Grécia de recusar as propostas das instituições-antes-conhecidas-pelo-nome-de-troika e de convocar um referendo para auscultar o povo grego.

É surpreendente porque se esperaria de pessoas com este nível de responsabilidade que soubessem o que estão a fazer e que antevissem os desenvolvimentos possíveis das jogadas que fazem. Constatamos que, afinal, não sabiam e não anteviram. Ou não quiseram saber, para considerar outra possibilidade ainda mais preocupante. Ou, pior ainda, jogaram conscientemente para chegar a este resultado e todas as palavras que proferem nascem da mais profunda hipocrisia.

Teria sido melhor, para usar a paternalista expressão da chefe do FMI, que Lagarde, Dijsselbloem e Juncker tivessem deixado a discussão para os adultos e se tivessem retirado discretamente da sala para o recreio. Mas não o fizeram e teremos agora de pagar o preço da sua arrogância. Nós, os europeus, nós, os portugueses. Porque não há neste momento nenhuma saída boa da crise.

É possível que as instituições-antes-conhecidas-pelo-nome-de-troika não estivessem à espera de que Tsipras se preocupasse com as promessas eleitorais que o seu partido fez ao povo grego nem se preocupasse com o bem-estar dos seus concidadãos. É natural que assim seja porque todos os outros chefes de governo com quem a troika interagiu (a começar pelo lamentável espécimen que ocupa S. Bento) sempre dobraram a espinha perante as ordens recebidas, sem o mínimo rebuço em quebrar promessas eleitorais e em empobrecer os seus países. Por isso, é bem possível que Bruxelas tenha mesmo ficado em estado de choque quando viu à sua frente um político com uma espinha dorsal.

É tristemente revelador do défice democrático da União Europeia que o anúncio do referendo seja visto (como já tinha acontecido com o referendo que George Papandreou foi obrigado a retirar em Novembro de 2011) como um gesto inaceitável de confronto, um verdadeiro casus belli. A Comissão Europeia e o FMI estão acostumados a pressionar os chefes de governo que têm dúvidas e a ser obedecidos sem grande hesitação. Devolver uma decisão ao povo é algo que é mal visto (uma infantilidade, como diz Lagarde), uma demonstração de que os gregos ainda não perceberam que quem manda é quem tem o dinheiro: a Alemanha e o FMI.

Durante os últimos meses, habituámo-nos a ver descrita nos media a história da negociação entre gregos e a troika como um braço-de-ferro, com propostas e contra-propostas, pressões dos dois lados e o desprezo palaciano dos educados senhores de gravata e da senhora que não paga impostos contra os gregos preguiçosos.

A história desta negociação foi-nos contada tanta vez que a narrativa foi normalizada: de um lado estava a troika que queria mais impostos e menos gastos do estado e do outro o Governo grego que tentava manter os actuais impostos ou subi-los muito pouco e manter os actuais gastos do Estado ou descê-los muito pouco.

A história era (e continua a ser na esmagadora maioria das notícias) assim: há um remédio amargo que a Grécia tem de tomar. A troika quer que a Grécia tome muito e depressa. A Grécia quer tomar pouco e devagar. E andam há meses a discutir a posologia e a duração do tratamento.

O problema é que esta história, que os leitores têm lido e ouvido em todos os media, é uma refinada mentira. Não uma “inverdade”, mas uma daquelas refinadas aldrabices, como as que Passos Coelho diz nos nossos televisores com cara séria.

A verdade - que os factos comprovam para quem queira ver - é que a austeridade não funcionou, nem na Grécia nem em Portugal. Na Grécia, a austeridade aumentou a dívida para 320 mil milhões de euros (177% do PIB), reduziu o PIB em 25%, aumentou o desemprego para 26%, reduziu drasticamente o investimento e a economia, fez fugir os capitais, destruiu a classe média, criou milhões de pobres, uma catástrofe social.

A verdade é que o tratamento não é um tratamento mas um envenenamento. Lento e mortal. E a negociação foi sempre, por parte da Grécia, uma tentativa de reduzir a intoxicação de forma a dar possibilidade ao paciente de ganhar forças. Como escrevia o The Guardian no seu editorial de domingo: “Os credores precisam de ter a humildade de reconhecer que o seu programa de austeridade falhou. Nenhuma das privações a que a Grécia foi sujeita tornou a dívida grega mais sustentável mas, apesar disso, os credores ainda pedem mais”.

A verdade é que a Grécia precisa não de austeridade nem de empréstimos para pagar juros mas de investimento em grande escala para modernizar a sua economia e as suas instituições. A UE deveria servir para fazer precisamente isso. Mas não faz.

E, se a UE não é a Europa da solidariedade, da democracia, dos direitos humanos, do progresso para todos e do Estado Social, não serve para nada. A UE foi um belo sonho e é triste estar a morrer, mas a agonia já começou.

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