Quando tudo arde

Os verdadeiros incendiários não precisam de caminhar pelas ruas como o cidadão comum. Podem deixar arder enquanto negoceiam interminavelmente em salas climatizadas de prédios envidraçados. O que acontece lá longe pouco tem a ver com eles. Evitam tomar consciência que das suas decisões e dos seus bloqueios pode resultar o esmagamento de uma economia e a condenação de milhões dos cidadãos de um país à pobreza. Quando os seus planos falham, é com serenidade que propõem redobrar a dose.

Se as suas vítimas se revoltam, tratam-nas com condescendência, primeiro, e implacabilidade depois.

Nenhum governo da zona euro teria dificuldade em fazer passar nos seus parlamentos um plano prudente que consistiria em deixar a Grécia respirar, permitir-lhe o uso do seu saldo primário para tentar acudir à crise humanitária e recuperar na medida do possível a sua economia e, finalmente, dar aos gregos um horizonte de renegociação e reestruturação da sua dívida. Nenhum desses governos tem uma situação política e social tão difícil como o da Grécia. Eles tinham o espaço de manobra que a Grécia não tinha. Mas em vez da prudente generosidade triunfou o seu oposto, o egoísmo estúpido. Porque esta austeridade não serve ninguém. Nem os gregos, nem os europeus, nem sequer os credores que assim ainda menos verão o seu dinheiro. 

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Tampouco serve aos portugueses esta cegueira, e no entanto o governo de Portugal tem insistido em ser dos mais inflexíveis da zona euro. Maria Luís Albuquerque bem pode mascarar esta atitude numa linguagem da “ambição”, que a realidade está bem à vista e é igual à do resto do seu governo. Pedro Passos Coelho e Paulo Portas alinham na lógica punitiva contra a Grécia como forma de preservar as suas carreiras políticas e maximizar as suas hipóteses eleitorais.

Não seria tarde para pelo menos optar pelo plano que Strauss-Kahn propôs: não emprestar mais dinheiro à Grécia mas cancelar também os pagamentos de dívidas para os próximos dois anos, e entretanto deixar o país viver com o orçamento que tem e iniciar negociações para a redução da dívida.

Há tempo para a racionalidade na Europa. Mas não creio que haja ambiente.

No célebre Que farei quando tudo arde de Sá de Miranda, o poeta descreve a atitude tirânica que “manda e faz tudo o que quer, a torto e a direito” e opõe-lhe a Razão, que “a tempos espia, espia ocasiões de tarde em tarde, que ajunta o tempo” e conclui: “enfim vem o seu dia”.

Hoje o tempo é de quem “faz e desfaz, sem respeito algum”. Persistamos na razão, que enfim virá o seu dia.

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