Ferragens, chocolate e jardins escondidos

Casa de negócios antigos e modernos, a Rua do Almada foi a primeira artéria do Porto a ter passeios e é a morada de um dos mais doces segredos da cidade.

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Já há algum tempo que a Rua do Almada andava a insinuar-se, como quem pede com jeitinho, “e, então de mim, não se fala?”. Não valia a pena tanto esforço. Mais cedo ou mais tarde, falar do Porto é falar também da Rua do Almada. Essa via rectilínea, que foi a primeira a ser construída fora do perímetro da Muralha Fernandina e que, desde então, não parou de querer ser a primeira noutras coisas também.

Construída entre 1761 e 1764, por impulso de João de Almada e Melo, principal responsável pelo desenvolvimento do que chamamos hoje Baixa do Porto, a rua foi desenhada por Francisco Xavier do Rego, sobre o que fora o traçado da antiga estrada romana que ligava o Porto a Braga. A nova rua da cidade seria também a primeira a ter passeios e número de polícia na porta, ligando, até hoje, a Rua dos Clérigos à Praça da República. Integrada no gigantesco programa de modernização do Porto, e na consequente e habitual falta de meios para o concretizar, a rua foi uma das razões para que o rei criasse a Junta das Obras Públicas, que assumiu a responsabilidade de controlar e coordenar todo o plano de obras. Localmente, a junta era financiada por um novo imposto sobre o consumo do vinho, pelo que se diz que a Rua do Almada foi paga graças à taxa de um real por cada quartilho de litro consumido na cidade.

Mas a Rua do Almada não se ficou por aqui. Os anos fizeram com que ficasse conhecida como a rua das ferragens, por causa do número de negócios ligados a essa área que ali se instalaram. O século XX foi menos brando com a artéria. Muitas lojas fecharam, as casas ficaram ao abandono e a degradação começou a instalar-se.

Estavam, portanto, criadas as condições para que acontecesse o que tantas vezes acontece nas cidades — abriu-se uma porta para que novos negócios e novos atractivos se instalassem. A Rua do Almada tornou-se o cenário preferencial para os primeiros sinais de que algo estava a mudar no Porto. Entre os negócios que persistem de torneiras, pregos e fechaduras, começaram a aparecer mercearias especializadas e as chamadas “lojas alternativas”. Hoje, o fenómeno está disseminado um pouco por toda a Baixa, mas foi na Rua do Almada que começou a ganhar corpo e forma.

Depois, inevitavelmente, vieram os bares e os hotéis. Com alguns atropelos à mistura — a centenária Casa das Cordas, por exemplo, não resistiu à venda do prédio onde estava instalada e à decisão de mudança de ramo pelos novos donos —, a rua já não é o que era, sem ter perdido completamente a sua identidade. Ainda é um espaço que cheira a azáfama, mas onde uma montra inesperada nos faz parar de repente.

É também um sítio onde vive gente que chegou há pouco, reabilitou casas e se instalou, levando risos de crianças novas e negócios de portas abertas (que inveja das casas compridas, com divisões grandes e jardins elevados nas traseiras). E passou a ser também o local onde se vai para vasculhar, de propósito, o que esconde aquela loja que abriu só há meia dúzia de meses, mas sem a qual parece que já não podemos viver.

E, depois, a Rua do Almada é também a rua onde se fabrica ainda uma das grandes delícias do Porto. Os chocolates da Arcádia são feitos, artesanalmente, na fábrica nas traseiras da loja. E a fábrica é uma maravilha de azulejos azuis e brancos, com armários até ao tecto, cheios de gavetas compridas que se abrem com um puxão decidido para mostrar filas e filas de pequenos chocolates em repouso. O cheiro é tão intenso e saboroso que parece que nem é preciso comermos os chocolates para lhe sentirmos o sabor (mas não se deixe enganar, coma-os mesmo). Acho que é mais do que hora de ir dar uma volta à Rua do Almada. Não fosse domingo e a Arcádia não me escapava.

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