A pastel de bacalhização do mal

Machado — O que é que te apetece?
Teresa — Sei lá. Talvez uns pastelinhos de camarão.
Machado — Vamos nisso. Traga-me uns pastelinhos de camarão muito fresquinhos.
Empregado — Pastéis de camarão não temos.
Teresa — Então dê-me dois copinhos de vinho branco.

Este diálogo d’ O Pai Tirano ilustra a relação de Portugal com o pastel. O português leva a sério o seu pastel. Se não há o pastel que quer, então não se come nada. Bebem-se antes dois copos de branco, que até ajudam a mitigar a falta do pastel.

Percebe-se, por isso, a revolta face ao abominável pastel de bacalhau com queijo da serra, da Rua Augusta, que faz almejar um novo terramoto, que soterre a Baixa e o frito obsceno com ela.

Uma coisa é o bacalhau. Aí, somos liberais e admitimos mais de mil maneiras de o cozinhar. Aliás, googlei “bacalhau com queijo” e apareceram 104 mil resultados. Surpreendentemente, nenhum era uma notícia de apoplexia da Maria de Lourdes Modesto. Mas com o pastel não transigimos.

Têm mesmo de misturar queijo da serra no pastel de bacalhau? Tudo bem. Não é natural, como Deus destinou, mas cada um sabe de si. Agora, não lhe chamem é pastel de bacalhau. Chamem-lhe outra coisa.

E será preciso anunciar com fotografias gigantes da aberração? Na Baixa, à frente das pessoas? Os turistas vão ficar a pensar que somos todos depravados. E para quê o espalhafato em público, com os brasões e a talha dourada? Parece que é de propósito para chocar. Façam essas coisas repelentes, mas com recato. Só falta organizar uma Marcha Pastel de Bacalhau com Queijo da Serra Pride.

Bom, depois de estabelecido o paralelismo entre os desprezíveis reaccionários anticasamento gay e os honrados defensores da tradição antipastel de bacalhau com queijo, interessa-me mais louvar as redes sociais que tornam possível este caso. Sem elas era impossível sustentarem-se em permanência níveis tão altos de indignação.

Em 498 a.C., depois de os atenienses terem incendiado Sardis e incentivado a Jónia à revolta, Dário, o rei dos persas, nomeou um escravo para lhe dizer a todas as refeições: “Senhor, lembra-te dos atenienses!” Assim, não se esquecia de que estava indignado. Ora, manter um escravo é muito caro. Além de ilegal, claro. Mas as redes sociais são de borla. E assim lembramo-nos todos os dias dos motivos de indignação. E isso é importante.

Na Guerra dos Tronos, a Arya Stark adormece a repetir uma ladainha com o nome das pessoas que quer matar. Para não se esquecer quem odeia. “Joffrey, Cersei, Walder Frey, Meryn Trant, Tywin Lannister, the Red Woman, Thoros of Myr, Ilyn Payne” equivale a “Pepa Xavier, Gustavo Santos, pessoas que vêem vestido azul e preto, júri do Ídolos, pessoas que vêem vestido branco e dourado, cientista da missão Rosetta com camisa cheia de mulheres despidas”. À Arya Stark mataram-lhe a família, aos indignados das redes sociais meteram-lhes queijo da serra no pastel de bacalhau. Westeroos é uma terra cruel, mas nem um Caminhante Branco seria tão selvagem ao ponto de praticar perversão culinária desta magnitude.

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