Esse mar é meu

A relação do ser humano com o mundo aquático parece sofrer de esquizofrenia.

A culpa não foi minha. Acho. É um consolo essencialmente estatístico. Cientistas portugueses comandaram um robot submarino não tripulado até ao fundo da costa vicentina, ao largo de Sagres, para inspeccionar a bagunça que lá anda. Encontraram 115 detritos, peças de lixo que até ali chegaram, a mais de 500 metros de profundidade.

Uma centena de testemunhos de civilização perdulária não é grande coisa. Se cada um corresponder a um cidadão, então temos 99,999% de portugueses que não contribuíram para aquele achado científico.

Era, porém, uma pequena amostra. Reproduzida à escala do mar português, as hipóteses de me apontarem o dedo aumentam um bocadinho. Seja como for, o lixo lá está e lá ficará, a não ser que algum autarca litorâneo ensandeça e amplie a recolha de resíduos sólidos urbanos às profundezas do oceano.

Duvido. A relação do ser humano com o vasto mundo aquático do planeta parece sofrer de uma esquizofrenia trivalente. Quando é para sujar, o mar é de todos. Para limpar, é com a natureza. E para explorar, cada um quer um quinhão só para si.

Neste momento, há uma corrida mundial à apropriação de extensas áreas dos oceanos. Cerca de 80 países reivindicam ampliar os seus territórios, alargando a jurisdição sobre a plataforma continental para além das 200 milhas que já controlavam.

O apetite expansionista dirige-se aos iscos que estão lá em baixo: recursos minerais e seres vivos que, se um dia puderem ser extraídos, hão-de servir para alguma coisa. Há nomes geologicamente salivantes, como nódulos de manganês, sulfetos polimetálicos ou hidratos de metano. Ou personagens mais corriqueiros – níquel, cobre, cobalto, zinco, ouro, chumbo e outros protagonistas da tabela periódica.

Portugal também está no páreo. A extensão da plataforma continental dá-nos enormes bocados de fundo do mar para dizermos que são nossos. O território nacional ascende na verdade a 3,8 milhões de quilómetros quadrados – quase a metade da superfície do Brasil. Orgulhem-se, Portugal afinal é bem maior do que o rectângulo, embora não sejam boas notícias para quem não saiba nadar – 97% é água. Um mapa com os novos contornos do país já circula há um ano pelas escolas, em marítimo ufanismo.

Demonstrando maior empenho, a China parecer querer ir mais além. Ao invés de reclamar o que se encontra lá em baixo, está a posicionar as suas bandeiras cá em cima, mesmo onde não há terra firme para fincar o estandarte. Não há problema, constrói-se uma ilha artificial.

É isto o que o gigante asiático está a fazer entre as Filipinas e o Vietname. A técnica é simples. Sendo o mar pouco profundo na zona, atiram-se doses celestiais de areia para cima dos corais. E eis que nasce uma ilha e morre um recife.

Chineses e norte-americanos bem podem discutir sobre as reais intenções desta génese não-espontânea – se é para fins pacíficos ou militares. Mas a verdade é que, aplicando-se a regra de que a plataforma continental tem dono, eis uma forma engenhosa de se alargar a propriedade sobre o fundo marinho.

Dizem que o oceano é a última fronteira da exploração de recursos. E, por aquilo que os drones submarinos vão revelando, também seria uma espécie de derradeira esponja para a sujidade humana.

Não acredito. Ainda se há-de encontrar uma forma de ir até ao centro da Terra, para trazer de lá o que nos faz falta e largar a tralha que já não cabe cá em cima. Meio século depois da invenção do termo continuamos a viver a economia cowboy: quando tudo se esgota num sítio, é pegar no cavalo e seguir em frente. 

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