O triunfo da afro-Lisboa

Há exactamente dez anos estava no festival Sónar de Barcelona a assistir a uma sessão DJ de João Barbosa (Branko) com Kalaf Epalanga, que são hoje o núcleo do grupo Buraka Som Sistema, na altura adoptando a designação de 1-Uik Project.

Estava a ser uma actuação morna até que no final lançaram o tema Yah!, aquele que viria a ser ano e meio depois o primeiro single dos Buraka, com Kalaf a gritar “this is Lisbon sound!”, para uma audiência transnacional e aquele que tinha sido até aí um auditório alheado começou a dançar de forma expansiva.

Foi um momento importante. Para a confirmação internacional do som kuduro. Para o futuro dos envolvidos na acção. Para mim que acreditava há anos que aquela música tinha potencial de afirmação. E também para uma renovada “cultura negra urbana portuguesa”, não tão dependente de modelos exteriores.

Até aí para João e Kalaf havia mais dúvidas do que certezas. Do ponto de vista artístico e socialmente era música desvalorizada, ou não estivesse tudo ligado. No fim de contas os futuros Buraka receavam não ser compreendidos pelos portugueses de ascendência africana, mais conectados com a cultura global hip-hop, ou pelos portugueses enquanto todo, ficando num limbo.

Meses antes haviam-me dado a ouvir, com entusiasmo, o novo álbum dos 1-Uik Project, que tinham acabado de gravar, numa linha onde a soul se cruzava com o hip-hop e, depois, escutámos esboços de kuduro em que andavam a trabalhar. Era o embrião dos Buraka, ainda sem esse nome. Logo aí foi claro que o seu futuro estava ali. E o álbum dos 1-Uik Project ficou na gaveta.

Aquela sonoridade não era novidade, mas não tinha visibilidade, manietada nas malhas do preconceito. Um ano depois os Buraka foram capa do suplemento ÍPSILON deste jornal sem nenhum disco editado, mas percebia-se que poderiam ser um fenómeno.

E tal veio a suceder. Internacionalmente aconteceu mais rápido, favorecidos por um contexto de valorização de novas linguagens musicais urbanas até aí desacreditadas. Em Portugal a sua afirmação plena foi mais lenta mas também acabou por ocorrer.

Durante anos Portugal viveu nessa indefinição entre privilegiar relacionar-se mais com África, Brasil ou Europa, sem perceber que será tanto mais europeu quanto mais transatlântico for. De alguma forma é como se o kuduro, revisto pelos Buraka, fosse essa espécie de bricolagem, remontagem de influxos provindos de vários localismos, para se afirmar como linguagem global.

Claro que a presença africana em Lisboa é secular e o efeito Buraka foi apenas um entre outros ao longo dos anos, mas naquela altura personificaram o irromper de uma nova geração urbana que foi capaz de criar e atribuir credibilidade a novos imaginários e experiências do Portugal pós-colonial. Hoje essa presença pode não estar consolidada, mas sente-se de forma vibrante.

Mais ainda: percebe-se que, com incidência em Lisboa, mas não só, o imaginário africanizado domina a cultura popular portuguesa. Nos carros, nas ruas, nas lojas ou ginásios ouve-se kizomba ou kuduro. Na TV as telenovelas reflectem esse panorama. Na música, para além dos Buraka, uma série de outros nomes (Marfox, Nigga Fox, Batida ou a editora Príncipe) tornaram-se emblema para o exterior de um país até agora mais conhecido pela melancolia do fado do que por música física.

Nas artes, na literatura, na comida, na boémia, na permeabilidade da língua, nas roupas, nos penteados, no trato social, em iniciativas espontâneas ou enquadradas em acontecimentos institucionais, até na forma festiva como os turistas vivenciam a cidade, vislumbram-se marcas de uma nova “cultura negra portuguesa pós-colonial”. Uma realidade que há dez anos se pressentia, mas ainda não tinha sido activada. Era mais desejo do que realidade. Hoje ela aí está, dinâmica, plural, festiva, rica. 

Significa que já não existem preconceitos? Não é isso, claro. Não tenhamos ilusões. Preconceitos haverá sempre, o que se pode fazer é circunscreve-los. E nisso a música, e as artes em geral, são essenciais, estimulando o conhecimento e antecipando ou impulsionando novas realidades, contribuindo para processos de metamorfose social, mas também são essenciais políticas estruturais (emprego, habitação, educação, acesso à cidadania), para que não se criem subclasses marginalizadas.

Um dia aceitaremos com naturalidade que a ideia de uma “cultura negra portuguesa”, nada tem a ver com a cor da pele ou até com um passado africano, mas isso vai acontecer. Talvez só ganhemos total consciência disso quando abandonarmos expressões como “lusófonos”, “afro-portugueses” ou “luso-africanos”, quando tentamos legitimar a diferença, acabando por evidenciá-la.

Nesse dia o título desta crónica não será “o triunfo da afro-lisboa”. Será apenas “o triunfo de Portugal”. Porque é disso que se trata.
 

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