“Só com quantidade se poderá ter qualidade”

Com experiência tanto na elite como nos escalões mais baixos do râguebi nacional, Marcello D’Orey afirma que em Portugal “discute-se o formato mas não se discute o essencial”

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Luís Carlos Moutinho

Vestiu a camisola da selecção nacional por 61 vezes e fez parte da geração de ouro do râguebi nacional que esteve presente no Mundial 2007, mas oito anos depois, Marcello D’Orey diz que é preciso voltar a alargar a base de recrutamento e ter a “coragem” para fazer uma aposta a médio prazo, dando oportunidade aos mais jovens. Sobre os CAR, Marcello considera que com “os valores despendidos” é um investimento que “não compensa” e alerta que em Portugal “olha-se sempre para o formato e não para as razões verdadeiras” dos problemas.

 

Qual a sua opinião sobre o momento actual do râguebi português e das selecções nacionais?

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Estamos num momento complicado e há que tomar algumas decisões. Há a possibilidade de se optar por um projecto a médio prazo, apostando nos jovens. Há miúdos com muito potencial e dando tempo para que eles durante um ou dois anos ganhem alguma experiência, começam a surgir resultados. Mas é preciso ter alguma coragem para fazer isso. Não digo que se corte completamente com os jogadores mais velhos, mas quando for preciso optar entre dois jogadores, de perfil similar, onde um tem potencial de futuro e o outro não tanto, deve-se escolher o mais jovem. Assim se criaria uma equipa. Uma coisa é acrescentar um ou dois jogadores que são uma mais-valia, outra é acrescentarmos na véspera de um jogo, 10 a 12 jogadores. Aí não há milagres. O râguebi é um desporto colectivo e é preciso trabalhar os mecanismos da equipa. Se não se fizer isso, é mais complicado. Os resultados bons que Portugal teve, resultaram de uma opção que se tomou, de uma série de políticas no final dos anos 90, início de 2000, onde se apostou num conjunto de jogadores relativamente largo com as selecções regionais, que permitiram que 60 a 70 atletas tivessem acesso a um nível competitivo mais alto. Assim surgiram alguns novos jogadores, que estavam fora do meio que normalmente se via. Tivemos jogadores de Arcos de Valdevez, de Vila Real, de Évora, do Porto, de Coimbra e mesmo de clubes de Lisboa, que não estavam na maré de cima, mas expostos a esse nível intermédio mostraram que tinham potencial. Foram chamados, corresponderam e vários tornaram-se figuras no râguebi. Esse trabalho começou a dar resultados a partir de 2002-03, ou até um pouquinho mais atrás, porque Portugal esteve a quatro pontos de ir ao Mundial, em 1999. Nessa altura surgiram jogadores que marcaram uma geração: Miguel Portela, Ricardo Nunes, Alcino Silva, Luís Pissarra…. É preciso dar algumas oportunidades.

 

Como funcionavam essas selecções regionais e que opinião tem do Centro de Alto Rendimento (CAR)?

As selecções regionais começaram a participar num torneio intermédio que havia de regiões da Europa em que, em determinados anos, Portugal teve duas equipas a participar, inclusive a selecção Norte/Centro que chegou a uma final. Isso permitiu que vários jogadores ganhassem muita experiência. Os CAR, na minha opinião, tiveram algumas mais-valias para os jogadores fisicamente. Para a selecção de XV, tenho muitas dúvidas que tenham acrescentado muito. O número de jogadores, a intensidade dos treinos… não acho que tenha acrescentado muito. Mas o problema é que o râguebi é um desporto amador, portanto o jogador não sente uma obrigação tão grande de participar desses treinos activamente, se não forem muito motivantes e interessantes. Não vi os jogadores a evoluírem muito. Nos sevens sim, porque acontece durante o ano inteiro. Mas também evoluem pelo meio onde andam a competir. E aí sim, houve vários jogadores a darem um salto muito grande. Mas com os valores despendidos, não compensa.

 

Concorda com a separação dos XV dos sevens?

Por um lado sim, porque olhando pelo lado dos jogadores é complicado conseguirem manter-se fisicamente frescos tanto tempo. É uma exigência muito grande. Para o nosso meio, para os nossos clubes é difícil. Quando treinei o CDUP, tinha dois ou três jogadores, dos melhores, que quase não participavam no campeonato. Isto é algo que deve ser bem gerido entre a federação e os clubes e é complicada essa gestão. Há jogadores fora de série que fazem falta ao XV.

 

Qual o modelo competitivo que defende para os campeonatos?

Ando no râguebi há alguns anos e já assisti a inúmeros formatos. O que foi comum a todos eles, é que passado um ou dois anos surgiam as duas acusações: ou que esse formato era injusto e que havia equipas que ganhavam por muito aos mais fracos ou então que o nível ficava muito afastado e só juntos haveria esse nível. Na minha opinião, o modelo em si é um pouco irrelevante. Temos é de ter equipas. Não podemos ter um campeonato de duas equipas porque assim o râguebi irá morrer. Precisamos de ter jogadores, porque acredito que só com quantidade se poderá ter qualidade. Sendo seis, oito ou 10, é uma questão pouco relevante. As 10 equipas têm a vantagem de podermos alargar a mais zonas do país. A desvantagem, como é natural, é que o fosso entre primeiro e último será um pouco maior, mas isso também é natural: o Barcelona também goleia o último classificado do campeonato de futebol espanhol. A questão, é que se sabe que há esse deficit, mas olha-se sempre para o formato e não para as razões verdadeiras dessa diferença entre os primeiros e últimos classificados. Porque é que o RC Montemor tem um deficit tão grande frente ao CDUL? O que podemos fazer para que daqui a dois anos consigam estar mais perto dos clubes de cima? Isso para mim é que é importante. Nos pequenos clubes ainda se está dependente de um “carola”, alguém mais esclarecido ou com acesso a mais patrocínios para fazer a diferença. E a sorte do râguebi é que têm havido alguns. E se essas pessoas saem, há quase uma morte do clube. Discute-se o formato mas não se discute o essencial. Em Arcos de Valdevez há poucos miúdos, o que se deve fazer? No CDUP não há condições físicas para treinar, o que fazer? Há que detectar os pontos fracos e tentar resolver essas questões a médio prazo. Há falta de discussão e de trabalho a médio prazo. A I Divisão, por exemplo, é caríssima para os clubes. As deslocações são imensas. Mesmo na II Divisão já há clubes com um jogo interessante, mas há equipas que são grupos de amigos. As que são mais organizadas e já jogam a sério, como o RC Bairrada, Guimarães RUFC, o RC Famalicão, por exemplo, mereciam algum trabalho da federação para que houvesse um pouco mais de escola.

Leia a primeira parte da entrevista aqui

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