Da “guerra dos parlamentos” à “guerra nos parlamentos”

A guerra nos parlamentos merece atenção e vai ditar o nosso futuro. O nosso futuro imediato.

1. A história política do absolutismo francês foi muito marcada por um sério litígio entre o centro do poder real e os tribunais, que então recebiam o equívoco nome de Parlements. Montesquieu, tido por um dos grandes teorizadores da separação dos poderes, por exemplo, era presidente do parlamento, isto é, do tribunal de Bordéus e, à boa maneira medieva, havia herdado o cargo de juiz de um tio.

Ora, os ditos tribunais arrogavam-se então a prerrogativa de avaliar a compatibilidade das ordenanças do soberano com as chamadas leis fundamentais do reino. Era uma espécie de pré-história do controlo da constitucionalidade das leis, em que os tribunais podiam travar a vigência de uma ordem real por ela violar os princípios fundamentais do reino. A conhecida “guerra dos parlamentos” vem a ser um episódio nuclear para compreender o sentido da independência judicial, designadamente depois da revolução francesa. Muitos dos problemas, dos mitos e das confusões que afligem o campo do jurisdicional têm ali e naqueles traumas fundadores uma razoável explicação de psicanálise constitucional.

2. Esta “guerra dos parlamentos” – que, na verdade, era uma guerra entre o detentor único do poder legislativo e executivo e os detentores esparsos do poder judicial – trouxe-me à memória um fenómeno novo e que nada tem a ver com aquele, mas que pouca gente – mesmo muito pouca gente – tem feito notar. Acudiu-me à lembrança por mera associação livre, já que falei em psicanálise constitucional. A expressão, com que tantas vezes tenho lidado “guerra dos parlamentos” e que punha frente a frente o poder político e o poder judicial, tomo-a agora no sentido literal: é mesmo de parlamentos que estamos a tratar.

Muito antes da crise financeira, era já clássica a discussão sobre o défice democrático das instituições europeias e da União Europeia como um todo. A eleição directa do Parlamento Europeu (PE), o aumento exponencial das suas competências e a responsabilização progressiva da Comissão perante o PE procuraram ajudar a resolver esse problema ao nível europeu. O crescente envolvimento dos parlamentos nacionais, primeiro apenas ao nível nacional, depois, mesmo que embora em medida limitada, ao nível europeu, também correspondia a essa necessidade progressiva de reforçar a democraticidade da integração. A dada altura – e, designadamente, com o advento da crise –, as coisas complicaram-se e os parlamentos nacionais começaram a querer interferir medularmente no processo de negociação e decisão especificamente europeu. Essa vontade de interferência – claramente ao arrepio do princípio da subsidiariedade (que vale tanto para cima como para baixo e que tem o seu conteúdo útil no critério do “óptimo territorial”) –qualifiquei-a eu, faz tempo, como uma crise de ciúmes constitucionais. Ciúmes constitucionais dos parlamentos nacionais relativamente ao PE. Note-se que se chegou ao extremo de interromper um Conselho Europeu, algures no Outono de 2011, para consultar o Bundestag, retomando-se depois a respectiva sessão. É bem caso para dizer que, deixando a responsabilidade aos parlamentos nacionais, uns serão sempre e irremediavelmente mais iguais que os outros.

3. O novo fenómeno é, porém, diverso destes, embora esteja intimamente relacionado com o seu livre devir  e com a crise europeia. Já não é uma “guerra de parlamentos”; é, em bom rigor, uma “guerra nos parlamentos”. Diz imediatamente respeito, no quadro de cada parlamento, à disseminação de dissidências de grande porte nos grupos parlamentares que suportam os governos em funções. Registe-se que dissidências relevantes, com cismas, cisões e fragmentações de grupos parlamentares sempre houve em toda a história das democracias. Em Portugal, é bem conhecida, na segunda metade dos anos 70, a cisão do grupo parlamentar do PSD, em que se formou a ASDI e em que foram mais os deputados que saíram do que os que ficaram. Mas agora o fenómeno ganhou foros de contágio.

De há muito, desde os tempos de Thatcher que o Partido Conservador tem uma enorme brecha (que pode chegar aos 100 Deputados) em matéria europeia. Um dos grandes problemas de Cameron é justamente essa fractura, que o obrigou a propor o referendo e o tem ainda num colete-de-forças, sem sorte definida. Curiosamente, Tsypras queixa-se de igual pecha, tendo cerca de metade dos parlamentares do Syriza indisponíveis para aceitar um acordo mais “flexível”. Há um bom par de meses, foi o Governo de Manuel Valls em França, sustentado por Hollande, que enfrentou e enfrenta uma perda da maioria absoluta, por dissidência de dezenas de deputados que contestam as políticas de austeridade e de segurança. E agora, é a todo-poderosa Chanceler Merkel que, feitas as contas, sabe que tem mais de metade dos Deputados da CDU/CSU contra um acordo com a Grécia e provavelmente só se conseguirá impor juntando à votação do eventual acordo a disciplina imposta por uma moção de confiança (mecanismo a que raramente têm recorrido os chanceleres alemães). E, já agora, nos Estados Unidos, sabemos bem os impasses que o Tea Party tem gerado no hemisfério republicano.

Se pensarmos que o Reino Unido, a França e a Alemanha sãos os três mais importantes Estados da UE, esta contaminação de dissidências merece ser considerada. Por um lado, porque ela produz e é produto de um efeito de imitação: os deputados redescobriram o seu poder (se o fazem em Westminster, porque não no Reichstag?). Os políticos tendem a esquecer que estamos muito mais integrados do que supomos e que as notícias e as atitudes alastram como o óleo de oliva. Por outro lado, estas cisões são um sinal de que as linhas divisórias da política estão a mudar e que a questão “federalismo versus soberanismo” é capaz de ser um pólo mais agregador do que outros tópicos que ornamentam os programas partidários. A guerra nos parlamentos merece atenção e vai ditar o nosso futuro. O nosso futuro imediato.

 

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