Vamos brincar com a comida

O artista Douglas Fitch e o chef Leonel Pereira estão a fazer um filme de animação onde a comida é a protagonista. O trabalho insere-se no projecto Mar e Montanha, que quer promover os produtos algarvios numa colaboração entre cozinheiros e artistas plásticos.

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Estamos no interior de um filme de animação. O conteúdo de uma arca frigorífica foi despejado em cima de uma mesa e agora, peça a peça, é colocado de forma a compor um quadro hiper-realista. Um peixe, um leitão, uma galinha do campo. Acção. O filme vai começar. Tirada a fotografia, cada ingrediente ganha vida, sai da mesa, cumpre uma função que deixou de ser a de alimento para se transformar em arte.

Onde está a fronteira entre uma coisa e outra? A pergunta surge na sequência de um encontro mais ou menos improvável entre Douglas Fitch, americano, 55 anos, designer, coreógrafo, cenógrafo, realizador de animação, pintor, escultor, e Leonel Pereira, português, 44 anos, chef do restaurante São Gabriel, no Algarve, um cozinheiro que diz que a pintura é uma inspiração para o modo como apresenta os seus pratos. Não se conheciam até aceitarem o convite para entrar no projecto Mar e Montanha, uma ideia de André de Quiroga e Nuno Figueiredo, comissários da Trienal de Arte de Alentejo, que convidarem 20 artistas plásticos e 20 cozinheiros para se unirem em duplas e interpretarem 20 produtos gastronómicos do Algarve (o programa pode ser consultado em www.maremontanha-algarve.com).

Antes de escolherem que produto, Douglas Fitch e Leonel Pereira despejaram a arca do restaurante e Fitch decidiu animá-la numa ideia que dá continuidade ao longo trabalho que tem desenvolvido com comida.

Nesta história é preciso agora dar um salto. Do São Gabriel, num dia de Março em Almancil, passamos para Nova Iorque, em finais de Maio. São nove horas da manhã em Sunset Park, uma área que ainda não se tornou proibitiva para os artistas que se mudaram, em fuga dos preços de Manhattan, e assistem agora a idêntica inflação no novo grande bairro das artes e da moda em que Brooklyn se tornou. O estúdio de Douglas Fitch — ou Doug Fitch — fica numa rua de oficinas, armazéns, num antigo edifício industrial que foi dividido em apartamentos para artistas. Fitch ocupa dois, um para trabalhar e outro onde vive e no qual se destaca uma enorme mesa de refeições e uma bancada que não deixa dúvida: naquela casa sabe-se de cozinhados e a comida ocupa muito espaço na cabeça de quem nela mora.

As pinturas nas paredes, os utensílios que se misturam com móveis que parecem retirados das muitas produções que Fitch tem feito com as filarmónicas de Nova Iorque, Londres, Los Angeles, em trabalhos com os maestros Alan Gilbert, James Ross, Leonard Slatkin. Objectos estranhos inspirados em criaturas míticas e um armário que parece uma melancia. No estúdio, no mesmo corredor, há pedaços de cenários, figurinos, uma bicicleta de cidade, uma parede cheia de livros, muitas folhas de papel espalhadas com desenhos. É como se houvesse um percurso natural entre o estúdio, onde as ideias ganham forma, e a casa, onde essas ideias já são memórias e se preservam. Algumas, ao lado do frigorífico. Do conjunto, fica a noção de festa, um banquete, de onde se destacam quadros pendurados que são parte do trabalho de cerca de 20 anos que Doug Fitch criou com a artista plástica japonesa Mimi Oka. O tema era, justamente, comida.

A massa e o pão
Doug e Mimi chamaram a esse projecto Orphic Feasts, uma reinterpretação de receitas, ingredientes, representações de alimentos ou de rituais ligados à alimentação. Um dos mais emblemáticos de toda a série é a paródia à pintura de Bruegel, The Land of Cockaigne, um óleo de 1567 sobre uma terra mítica onde não é preciso trabalhar para conseguir comida, um sítio de abundância e excesso de alimento em contraste com o espírito vazio. No quadro de Doug e Mimi — que imita o estilo de Bruegel —, vemos os dois artistas caricaturados, de barriga cheia, a dormir debaixo de uma árvore, uma mesa farta, alimentos pelo chão, enquanto ao fundo uma criança sobe uma montanha feita de massa de pão. “É o filho de Mimi”, aponta Douglas.

Foi por aí que tudo começou para Fitch, pelo pão. Quando era criança, em Fargo, North Dakota, a avó materna era uma visita regular. “Ela cozinhava muito mal, mas fazia pão”, conta Fitch no tom de quem conta uma história para uma plateia de crianças, sentado numa poltrona rota que veio de um palco. “Sempre que vinha, ela fazia pão”, continua, “e ninguém que eu conhecesse fazia pão. Estávamos nos anos 60 e naquela altura na América as padarias industriais mataram as caseiras; ninguém estava interessado em fazer pão. A ideia era que dava muito trabalho e ninguém queria saber disso. Ela ensinou-me a amassar o pão. Dá tão pouco trabalho comparado com o divertimento, e depois é tão gratificante. Em poucos minutos, misturam-se os ingredientes e há um bocadinho de exercício físico que sabe bem. No fim aparece aquela coisa fantástica que cheira tão bem e sabe tão bem. Porque não o fazemos mais vezes? Imagine-se que uma cultura inteira fugiu disso!” O espanto de Douglas foi o de quem conheceu um material mágico. “A massa do pão transformava-se. E nas mãos da minha avó e depois nas minhas dava pão. Eu achava aquilo um milagre. Faz sentido que durante séculos as pessoas achassem que era mesmo um milagre”, diz, referindo-se ao milagre bíblico da multiplicação dos pães e ao efeito da levedura. “Ninguém entendia aquilo, parecia vindo dos céus, até que Louis Pasteur, no século XIX, descobriu as partículas de levedura.” É então que Fitch começa a explorar a fronteira entre gastronomia, ou comida, e arte. “O conceito de milagre funciona muito bem na arte. Adoro essa ideia de milagre e de poder descansar nela.”

Começou a fazer pão em criança, continuou a fazer pão e, na faculdade, terminado o terceiro ano em Harvard, decidiu que ia parar. “Acho que não estava muito satisfeito com a minha formação ou educação — gosto mais desta última palavra —, achava-me fechado, que o essencial me estava a escapar e decidi tirar um ano e fazer algo na Europa.”

Enfiou-se na biblioteca da universidade à procura de hipóteses. A ideia de que podia escolher entre tantas possibilidades era fascinante. Foi por ordem alfabética, eliminando letras, mas parou logo no C. “Decidi ir para uma escola de cozinha em Paris. Pareceu-me um projecto óptimo. Porque gostava de fazer pão e gostava de fazer alguma comida e gostava de comer. Achei ainda que era uma boa maneira de ter um plano de refeições porque não queria gastar muito dinheiro em comida. Além disso, se aprendesse a cozinhar correctamente, seria sempre bem-vindo a qualquer casa, para fazer uns sautés e assim.” Era o plano. Passou um ano em La Varenne, Paris, e aprendeu mais do que sautés.

Voltou a Nova Iorque, terminou a faculdade e uns 12 anos depois encontrou Mimi Oka, uma antiga colega que lhe perguntou o que tinha feito ele no ano em que desapareceu. Contou ainda que em Harvard tinham escrito uma peça de teatro para ele, mas ninguém o encontrou.

Esse encontro com Mimi Oka foi em Los Angeles, e foi por acaso. Mais um acaso fê-los esbarrar um no outro em Tóquio e decidirem então trabalhar juntos depois de descobrirem que ambos tinham lido The Futurist Cookbook, descrito como uma das “melhores piadas artísticas do século” e escrito pelo fundador do movimento Futurista, Fillipo Tommaso Marinneti. “O que muitas pessoas não sabem é que Marinetti tinha um restaurante, um sítio experimental, criado a partir da ideia de que a comida é medium artístico muito nobre. No futuro iríamos buscar os nossos nutrientes a ondas rádio, o que libertaria a comida ou a ideia de refeição para uma experiência puramente estética. É o que está a acontecer com as nossos amigos no Algarve. É exactamente o que está a acontecer na cozinha do Leonel. Só não estamos — e acho que isso nunca irá acontecer — a ser alimentados por ondas rádio”, declara Douglas Fitch. 

Publicado em 1932, o livro de Marinetti, além de ser uma espécie de manifesto humorístico, reúne receitas, contos e experiências que inspiraram Douglas Fitch e Mimi Oka a definir o projecto conjunto que os trouxe a Portugal em Agosto de 2006. “Foi a primeira vez no país”, comenta Fitch, tentando soletrar Milfontes. Fizeram um enchido e chamaram-lhe Festa. “Era a salsicha da memória, uma espécie de colector de memórias. Pedimos às pessoas para nos levaram qualquer coisa que tivesse que ver com a sua memória, uma carta de amor de alguém de quem se separaram, um televisor velho, cabelo que ficou do último corte… podia ser quase tudo e apareceu muita coisa. Pusemos tudo num enorme alguidar, misturámos e enchemos uma ‘tripa’, que estava agarrada a outra ‘tripa’, etc. Depois oferecemos pedaços. De memória. Era um souvenir, os souvenirs são estranhos”, conta sobre essa experiência, mais uma que mostra que Douglas Fitch não tem qualquer problema em brincar com a comida e que com ele foi a brincar com comida — com a massa do pão — que a arte começou.

Comida enquanto metáfora
As pessoas referem-se aos chefs como sendo artistas, mas já não fazem isso quando são artistas a mexer com comida. A Mimi e eu quisemos alargar esta fronteira”, esclarece para justificar a incursão. “É fácil dizer que a arte é comida, comida para alma, e é também fácil entender isso. É uma óptima metáfora. Mas se a arte é comida, porque não fazer da comida arte? Isso já não é fácil. Não se pode pintar com ketchup. Se fazemos arte do que comemos isso é uma expressão, mas é também uma verdade muito clara. Quando perguntamos o que comemos, esquecemos que comer é consumir, e comemos com os olhos, com o olfacto, com os ouvidos, com o palato, com todos os nossos sentidos, e estamos a consumir a experiência e a processá-la. A comida é uma grande metáfora para o modo como processamos qualquer coisa. Comemos uma pintura com os olhos. É muito interessante. Somos o que vemos, o que ouvimos e somos também o que comemos. Se começarmos a estar atentos a isso, a comida torna-se um medium muito útil e interessante para se trabalhar.”

Há 20 anos, quando começaram, a comida não estava na moda como está agora e, em inglês, ainda muito poucos tinham lido The Futurist Cookbook (estava traduzido do italiano há muito pouco tempo). Muitos menos ainda tinham experimentado a cozinha molecular. “As pessoas diziam-me que o que nós estávamos a fazer era decadente. ‘Estão a brincar com comida’”, acusavam. Porque é que pensavam que brincar com a comida era decadente? Estamos a comê-la e é delicioso! Mas vamos outra vez às palavras, o que é decadente? A palavra tem que ver com decair ou cair. A comida não é decadente, mas é interessante que toda a comida natural, por exemplo, a fruta, é melhor no momento mesmo antes de cair da árvore ou do arbusto, e a carne depois do animal morto, é pendurada e começa a decompor-se e é quando a comemos. Toda a comida é melhor quando começa o processo de decair. É outra grande metáfora para a sociedade, as sociedades quando atingem o pico começam a decair e os artistas são sempre um espelho do que estamos a fazer em sociedade. Os artistas têm esse papel de barómetro dos tempos ao longo da história e enquanto barómetros não estamos conscientes disso, apenas apanhamos a boleia e mostramo-lo como um guia”, conclui, num discurso que também podia ser quase um manifesto artístico.

Pintura, escultura, fotografia, desenho, vídeo fazem parte dos trabalhos com Mimi Oka. Alguns estão nas paredes da cozinha de Douglas Fitch. Fizeram algo inédito na carreira de um e do outro e no fim publicaram um livro, Orphic Fodder: Experiments in Dinning, or’ an Autobiography of as Artistic Collaboration (Eppure Editions), uma edição bilingue, em inglês e francês publicada em 2013. O trabalho que agora Douglas Fitch veio fazer com Leonel Pereira pode ser visto como um prolongamento pessoal dessa experiência artística. “Revejo-me na irreverência do Douglas Fitch”, refere o chef do São Gabriel, curioso quanto ao resultado final de uma animação que está em processo de pós-produção. Há poucos dias, Leonel Pereira apresentou o prato que vai fazer parte do menu de Verão do seu restaurante inspirado num produto algarvio e que também será integrado num livro com pratos dos outros 20 chefs, além do trabalho que todos desenvolveram com artistas plásticos para o projecto Mar e Montanha, Arte e Gastronomia no Algarve, que os dois comissários da Trienal do Alentejo estão a desenvolver com o Turismo de Portugal.

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Fitch com o chef do São Gabriel, Leonel Pereira: “Revejo-me na irreverência do Douglas” Cortesia Rodrigo Bettencourt da Câmara

Leonel Pereira fez um robalo. “Este ano os robalos estão a aparecer no Algarve com uma qualidade extrema”, refere, para justificar a escolha. No seu caso, tinha de confeccionar um produto do mar. “É um robalo com topinambur (um meio tubérculo, meio legume), servido com um ravioli de azeitona preta recheado com azeitona verde. Tem aipo rama e uma batata inteira, que depois é partida com a mão, rasgada, e tem um cremoso de topinambur”, revela o chef.

A produtora de Douglas Fitch, Giants are Small, irá contar a história da mesa de Leonel Pereira. Vai chamar-se Still Life in Motion. “É um filme animado e vai acontecer numa casa comestível”…, adianta, ligando esta ideia a outra que tinha e se mostrou para já difícil de concretizar: produzir mesmo uma casa onde tudo é comestível. Desenhou para a Nest Magazine, uma revista dedicada ao design, com enfoque no design de interiores, que terminou em 2004, depois de 26 edições, mas que fez culto. “Nessa casa, as pessoas mais ricas ficavam no topo, junto ao tecto, e comiam umas coisinhas e quando comiam o candeeiro caía e estilhaçava-se na mesa… A casa era também uma peça de teatro que contava a história da nossa sociedade e de como ela colapsa. Acho interessante a ideia de começar a fazer pequenos mundos. É o que faço no teatro. O propósito da fantasia é apresentarmos um caminho, o acesso ao oposto da fantasia. Muitas vezes precisamos dela para entrar na realidade. Se tivermos um universo paralelo, entendemo-la melhor e começamos a ter um mundo melhor, sem isso fica tudo muito limitado.”

Pode parecer, mas Douglas Fitch não se perdeu nesta história. “O Still Life in Motion é uma ideia teatral”, continua. “A comida está inanimada, mas quando comemos ela anima-nos. Há objectos na nossa vida que nos dão alegria e ponho-me a pensar no que lhes acontece quando vou para a cama; acho que andam a dançar por aí. Os objectos têm vida própria”, ri. Volta a ficar sério. “Trabalho muito com marionetas e as marionetas são conhecidas como objectos inanimados que ganham vida quando estão nas mãos de humanos. Gosto dessa noção dos objectos inanimados ganharem vida e por isso escolhi o nome Still Life in Motion. A ideia do memento mori sempre me fascinou, dá-nos a noção de que a vida se vai tão depressa. A arte trabalha muito isso. Se imaginarmos quanto tempo demora a fazer uma pintura a óleo perfeita... Pintar uma flor ou um porco. Quando a pintura estiver terminada o porco estará comido, a flor morta. As pinturas estão a preservar, a eternizar aquele momento no tempo de uma forma muito lenta. Como é que se pára o tempo? Como é que o desaceleramos? O Still Life in Motion é essa tentativa e é uma piada. Gosto do humor. No São Gabriel, estivemos a filmar cada um daqueles ingredientes. Tudo ali é comida de verdade e a sua função é chegar à cozinha. Mas enquanto still life (manter-se viva) a sua função passa a ser de arte. Então, quando um ingrediente sai para a cozinha, é substituído por um outro ingrediente inanimado, a versão artificial dele mesmo. Será um filme de três minutos, mas quero depois trabalhar essa imagem em vários meios. Gostava que essa ideia se estendesse”, conclui Douglas Fitch sobre um trabalho que foi pensado para poder continuar. A primeira etapa está quase pronta e será apresentada no Algarve em data ainda a fixar. Leonel Pereira irá recebê-la com um prato de robalo da ria Formosa servido a Douglas Fitch.

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Os ingredientes que Leonel Pereira tinha na sua arca frigorífica compõe um quadro hiper-realista e são o início de um filme de animação. O produto escolhido pelo chef para esta parceria foi o robalo. Cortesia Produção Mar e Montanha
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