A mulher mais interessante de quem nunca ouvimos falar

Chama-se Allee Willis, escreveu vários hits, ganhou Grammy, foi pioneira da Internet, dá festas para a society californiana e está a rodar um filme sobre Detroit, a sua cidade natal, que já tem 55 mil horas. Aos 67 anos a sua criatividade parece imparável.

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Oh, meu Deeeus”, lança Allee Willis. Tem à sua frente uma visita que nunca tinha ouvido falar de Bubbles, o seu alter ego — uma artista conhecida pelo seu cabelo despenteado, por usar uma mistura de cores enjoativas e pelas suas tiradas quase ofensivas. Lily Tomlin, uma coleccionadora dedicada, chegou a dizer que ela era “a maior artista do nosso tempo ou de qualquer outro”.

E Bubbles é só uma parte. A casa Willis é conhecida como o Museu do Kitsch, um palácio cor-de-rosa repleto de pentes africanos por estrear, puzzles do Barco do Amor e televisões da era espacial. No seu centro está uma compositora de 67 anos, vencedora de um Grammy, pioneira da Internet e organizadora de festas, que nos vem dar as boas-vindas à porta, com o seu cabelo encaracolado — comprido de um lado e curtinho do outro — por baixo de um boné vermelho.

Actualmente, Willis está a engordar o currículo. Tem trabalhado numa música, vídeo e filme inspirados na sua cidade natal, Detroit.

Chama-se The D e o processo criativo que rodeia a música tem estado livre de intermediários. Não houve sessões confortáveis em nenhum dos muitos estúdios de Los Angeles. Em vez disso, levou a sua equipa para a estrada e registou cerca de cinco mil — não é força de expressão — faixas. Desde pessoas normais a cantar em pizzarias e campos desportivos de liceu a celebridades com uma ligação à cidade, incluindo [os músicos] Maejor e Ray Parker Jr., a juíza do Supremo Mary Wilson e [a cantora e política] Martha Reevez. Claro que é um castigo fazer as misturas.

“Foi impossível ouvir as cinco mil gravações de uma só vez”, diz Willis. “Não há nenhum programa que nos permita fazer isso.”
Alguma vez pensou em gravar menos?
“Olhe à sua volta”, responde. “O que é que acha? Nunca nada é de mais.”

Aí ela marca um ponto. No Museu do Kitsch, a sua casa desde 1980, o sistema habitual parece ser “mais é mais”. Mesmo que Willis se queixe do volume de gravações que ela e a equipa têm de analisar, continua a acrescentar coisas ao projecto. Dina Duarte, que costumava fazer as limpezas, é já uma antiga assistente. Tem uma Sony Handycam na mão, sempre a filmar tudo. E isso inclui um canalizador a ser chamado para um serviço ou um tratador de árvores a subir às palmeiras. Recentemente, Willis filmou os acontecimentos que rodearam a sua cirurgia para a substituição da anca — pelo menos o que conseguiu. “Estamos aqui por causa da tua saúde”, disse-lhe a sua companheira, Prudence Fenton, acabando com as filmagens do dia. “Não sou a tua cameraman.

A sua energia infindável, o alargado círculo de amigos e a personalidade artística não evitam que haja também um toque de melancolia quando tenta explicar porque é tão obcecada em juntar tanta coisa, o tempo todo. Refere que no seu testamento exigiu que a casa fosse preservada exactamente como está actualmente, incluindo o recheio das gavetas e as taças de rebuçados que há em cada divisão.

“Um dia, alguém vai dar de caras com esta tralha toda e dizer ‘oh, esta miúda tinha cabeça”, afirma. “Talvez as pessoas fiquem finalmente a saber quem eu sou.”

Tem alguma razão. Allee Willis não é um nome que toda a gente conheça. Mas o seu trabalho sim. Basta colocar o seu nome num motor de pesquisa, entrar no seu site na Internet ou ir à base de dados BMI. Como compositora de canções, tem alguns hits, desde Boogie Wonderland cantado pelos Earth, Wind & Fire, a Neutron Dance, das Pointer Sisters, ao seu último êxito, I’ll Be There For You, conhecida como a música da série Friends.

Também dirigiu os seus próprios vídeos, construiu cenários para Just Say Julie, um programa da MTV, tinha uma coluna na revista Details, foi co-autora da adaptação para musical de Cor Púrpura, que esteve na Broadway entre 2005 e 2008 e que será reposto ainda este ano.

E ainda há Willisville. Na década de 1990, Willis passou anos a tentar construir uma comunidade online que juntasse redes sociais e lojas online, ainda antes de aparecer o Facebook e o eBay. O chefe executivo do projecto foi Mark Cuban, empresário do entretenimento e futuro proprietário da equipa de basquetebol Dallas Mavericks. Cuban diz por email que a “criatividade [de Willis] vai além de qualquer coisa que eu alguma vez vi”.

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Willis compôs o hit Boogie Wonderland para os Earth, Wind & Fire. Philip Bailey, vocalista, diz: “A coisa fantástica da Allee é que ela escreve para o artista especificamente. Não faz uma coisa que serve para toda a gente."

E agora The D. É a cidade onde ela cresceu. Gregory Beard, dono de um restaurante de Detroit, o chef Greg, ficou a conhecê-la depois de ela lá ter ido várias vezes. Vê a canção como uma espécie de grito de união. “Queremos que todos se juntem e que a cantem, como o We Are the World, diz. ‘We are ‘The D’.”

Claro que um grito de união precisa de um vídeo a acompanhar. E onde há vídeo há mais vídeo. Jason Ryan Yamas, um produtor de cinema independente de 29 anos, aceitou ser co-director de um documentário intitulado Allee Willis Loves Detroit. Espera ter uma montagem até ao final do ano.

Tomlin, amigo de longa data e também nascido em Detroit, não fica surpreendido por Willis ter mergulhado tão fundo neste projecto. É assim que ela trabalha. Para além disso, acha que há uma relação natural entre a amiga e Detroit, uma cidade que gerou tanta criatividade, entrou em colapso e que agora está a tentar reanimar-se.

“A mentalidade é não desistir, uma espécie de ficar por ali o tempo que for preciso”, diz Tomlin. “Ela encontrou um sítio onde consegue regenerar-se, onde consegue ter quase tudo como quer. Já sabíamos que Detroit era uma grande cidade, como era real e determinada, e claro que vai voltar a ser.”

Willis cresceu em Detroit, na Sorrento Sreet, como a mais nova de três irmãos. A mãe, Rose, dava aulas ao primeiro ano, fazia umas almôndegas especiais chamadas Satélites (feitas com arroz) e deixava a filha pintar com os lápis de cor. O pai, “Big Nate”, dirigia uma sucata, chamava-a Cookie Dook e adorava dançar com ela quando chegava do trabalho.

Willis teve sempre uma relação com a música. Marlen Frost lembra-se de pôr The Maharajah of Magador, o singular hit de Vaughn Monroe, quando a irmã não tinha ainda dois anos. “Há uma parte em que há uma voz em falsetto e ela punha-se à frente do gira-discos a cantá-la”, diz Frost, sete anos mais velha. “Aquela vozinha aguda fininha. Eu tinha de pôr o disco umas 20 vezes por dia.”

Tudo mudou para Willis no Verão de 1964, mesmo antes do último ano de liceu. Rose ficou doente e foi para o hospital. Morreu uns dias depois com um problema cardíaco não diagnosticado. Algumas semanas mais tarde, “Big Nate” enamorou-se da mãe de uma das amigas de Allee. Basicamente deixou de aparecer em casa, até trazer a futura madrasta. Depois de Nate voltar a casar, ele e a nova mulher deitaram fora todas as fotografias e objectos da família. Willis acha que o desejo da madrasta de varrer da memória a Sorreno Street foi o que originou o seu desejo compulsivo de documentar a sua vida.

“Tenho três coisas da minha infância”, diz. “Tenho um boneco Ben Casey [personagem de uma série televisiva famosa sobre médicos da década de 1960]. O meu tem um pequeno buraco no coração porque eu queria sair com uma pessoa e ele não quis sair comigo e por isso eu espetei um alfinete no boneco. Tenho a aparelhagem que estava na sala de estar. E a minha máquina de escrever, que comprei quando tinha 13 anos. Uma Royal vermelha e branca.”

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A casa Willis é conhecida como o Museu do Kitsch. E já deixou em testamento que deverá manter-se intocada, até nas taças com guloseimas

Quando a família se desmoronou, Willis não se retraiu. Na Universidade do Wisconsin, onde se licenciou em Jornalismo, com uma especialização em publicidade, em 1969, os amigos recordam-na como alguém que era o centro das atenções. Foi para Nova Iorque, entrando na indústria musical como copywriter. Começou a coleccionar e a decorar o seu apartamento com mobília abandonada. “Ela sabia os horários e as rotas das carrinhas que recolhiam coisas pesadas”, recorda a amiga Connie Zalk. “Saía à meia-noite e encontrava aquelas mobílias fenomenais.”

Willis conseguiu um contrato com uma discográfica em Nova Iorque e no ano épico de 1974 estreou-se com o seu Childstar, um álbum de cantautor que se integrava no estilo de Laura Nyro, James Taylor e Carole King. Mas impôs-se e pouco tempo depois começou a escrever para outras pessoas. Muito. Na BMI.com existem 599 títulos registados com o seu nome. Venceu um Grammy pelo trabalho na banda sonora de Beverly Hills Cop, teve sucesso com o tema de Friends em 1994 e tem o seu nome em sete das nove canções do álbum I Am, de 1979, dos Earth, Wind & Fire, incluindo Boogie Wonderland, que entrou para o top 10.

“A noite entra muito devagar nos corações dos homens que precisam de mais do que aquilo que conseguem ter” — o vocalista dos Earth, Wind & Fire, Philip Bailey, cantarola uma parte do hit ao telefone quando se pergunta sobre Willis. “A coisa fantástica da Allee é que ela escreve para o artista especificamente. Não faz uma coisa que serve para toda a gente.”

Na Califórnia, começaram as festas. Era possível encontrar [os actores] David Cassidy e Paul “Pee Wee Herman” Reubens, Buck Henry e Cassandra “Elvira” Peterson. Às vezes, pedia-se aos convidados que trouxessem uma comida — e que se vestissem como o prato de traziam. “E já sabíamos que seríamos humilhados”, conta a actriz Lesley Ann Warren, uma amiga de longa data. “Ela iria apontar para nós e obrigar-nos a participar num jogo maluco ou a cantar uma música. E tudo era fotografado. Já estávamos à espera. As pessoas que se sentiam atraídas pela Allee e as pessoas que a queriam conhecer e que acabavam por conhecê-la sentiam-se confortáveis no mundo dela.”

Num dia de semana recente, esse mundo é tradicionalmente louco. Pega num iPhone para dizer a um dos seus colaboradores que vá buscar outro disco rígido. Está a trabalhar com o colaborador musical Andrae Alexander, com uma parede de discos de ouro e platina por trás, numa das partes de The D. Vai ter com outro assistente ao outro lado da sala, que está a editar o vídeo. Também vasculha os arquivos para mostrar clips de James Brown, dos anos 1980, dela a cantar um tributo improvisado ao seu cão, Orbit, e de Tomlin a louvar Bubbles numa inauguração numa galeria de arte. Claro que, enquanto ela percorre o vídeo, Duarte vai filmando o momento, com a sua Handycam.

Quanto tempo de filmagens já tem para o documentário de Detroit?
55 mil horas, insiste.
Quanto dinheiro já gastou no projecto?
Mais de 600 mil dólares (511 mil euros).
“Agora estamos também a tentar arranjar dinheiro”, diz Willis. “A mamã ficou sem dinheiro.”

A frase traz implícita uma crítica de Fenton, a sua parceira há quase 22 anos. (Claro que se conheceram numa festa de Reubens.) “Antes era, ‘vou perder a minha casa’”, ri Fenton. “Bom, já acabou de pagar a casa. Acho que todos os amigos ouviram a conversa sobre como ela estava falida. Ela não pode estar falida.”

Fenton faz uma pausa. Depois perguntamos-lhe porque é que adora estar com Willis, ainda que a sua relação não seja convencional (não vivem juntas, só para dar um exemplo).

“Tanta alma e coração”, responde. “Ela consegue partilhar as coisas mais pequeninas. A beleza de um tipo de verde ou um pequeno terreno baldio, o que quer que esteja à sua frente. Ela está tão tão presente no momento. Nada mais importa.”

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

 

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