Há vinte anos a remoer as nossas pequenas coisas

Stuart Murdoch continua fascinado pelos momentos definidores da adolescência em que a música guiou sonhos, dores e angustias. Duas décadas depois de fundar os Belle & Sebastian, isso pode estar a mudar. "Talvez regrida e comece a escrever para crianças", diz ao Ípsilon.

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No NOS Primavera Sound os Belle & Sebastian fizeram aquilo que tão bem sabem fazer. Tocaram as canções de ontem e de hoje PAULO PIMENTA

No NOS Primavera Sound, noite de 5 de Junho, os Belle & Sebastian fizeram aquilo que tão bem sabem fazer. Tocaram as canções de ontem (que delícia ouvir Dirty dream number two) e de hoje (The party line é óptima para a pista de dança). Chamaram gente ao palco para que, todos juntos, nós, público, e eles, banda, celebrássemos a vida que aquela música contém. Vieram ao Porto apresentar Girls In Peacetime Want To Dance, o último álbum, mas, a um ano de completar 20 anos da carreira iniciada em Glasgow, nunca seria nele que centraríamos todas as atenções.

Por esta altura, falar dos Belle & Sebastian, mestres pop intemporais e guias espirituais a quem pelo menos duas gerações já se agarraram para atravessar as turbulências da juventude, nunca poderá significar falar do último álbum, qualquer que ele seja. Os Belle & Sebastian, que anunciaram esta semana o regresso a Portugal para um concerto no Coliseu de Lisboa, dia 12 de Novembro, são um universo inteiro, muito atraente, bem definido mas em expansão (como os arremedos dançantes do último álbum comprovam), e Stuart Murdoch, o vocalista e compositor, o homem mais indicado para nos guiar por ele. Encontrámo-lo a meio da tarde, a horas do concerto no festival, num hotel da Avenida da Boavista. Tinha dado um passeio pelo Porto na noite anterior, mas naquele dia ainda não saíra à rua e estava ansioso por uma brisa suave e por um pouco de sol. Saímos para a esplanada. Pediu um chá. Avançámos Belle & Sebastian dentro.

O público dos Belle & Sebastian é composto por quem vos acompanha desde os primeiros tempos e por quem vos foi descobrindo depois, nada mais que o normal numa banda com quase duas décadas de vida. Porém, todos, independentemente da idade, parecem ter uma relação semelhante com a banda. Sentem-na e compreendem-na da mesma forma. Alguma vez parou para pensar porquê?
Quando a banda começou, percebi que certos sentimentos nas canções poderiam criar uma ligação com pessoas da minha idade, no início dos vintes. Era para elas que compunha e é tremendo que essa relação se tenha reproduzido, vaga após vaga. Talvez as canções cheguem às pessoas que atravessam uma certa situação, numa mesma idade. É assim que as novas gerações [de fãs] surgem. São os esquisitos da turma, ouvem uma canção como Expectations aos 13 ou 14 anos e, de repente, cria-se uma pequena corrente. Talvez contem a um amigo, acabam por ir a um concerto e tudo se renova.

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Expectations 1996

Lemos muitas vezes a expressão ”ritual de passagem” aplicada à vossa música. Como se ela servisse de guia e de manual para lidar com os sonhos e desilusões da vida, enquanto a vamos descobrindo. Dito assim, soa a grande responsabilidade.
Por vezes pergunto à minha mulher: ‘O que ando a fazer aqui? Não ganhamos assim tanto. Talvez deva arranjar outro emprego’. Por vezes sinto-me inútil, por vezes acho que devia era servir café às pessoas, conversar com elas, estabelecer uma verdadeira ligação. Ela sossega-me. Diz-me que eu consigo criar uma verdadeira ligação, que essa é a questão, e que isto é mesmo um emprego. Mas, se forçar essa ligação, resultará trapalhão. Como tantos, passei por diversos momentos não muito bons quando era mais novo, e é nisso que quero tocar, nas relações que estabeleces com os outros nesses momentos. Quando envelheces, as razões pelas quais escreves canções alteram-se, mas, felizmente, o público, principalmente no contexto dos concertos, parece compreendê-lo. Podem ir ver-nos à espera de ouvir Beautiful ou We rule the school, e nós aparecemos a tocar The party line. Até podem torcer o nariz inicialmente, mas acabam por entrar na canção.

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Dirty dream #2 1998

Diz que com a passagem dos anos, mudaram as razões que conduzem ao nascimento das canções. É certo que, quando crescemos, as certezas da adolescência começam a ser menos definitivas e que a nossa autoconsciência se torna menos rígida. Um álbum como Girls In Peacetime Want to Dance, com os seus momentos synth-pop, com a tangente ao disco, algo que não imaginaríamos ouvir nos Belle & Sebastian, será reflexo disso?
Se chegas aos 40 e o teu emprego ainda é ser uma estrela de rock, então será melhor que deixes de te preocupar. As pessoas deram-te o seu apoio e tens um mandato para fazer o raio de música que quiseres. Com sorte, gostarão dela. Enquanto banda, porquê refrear-nos? Esta é a nossa experiência. [Neste disco] quisemos levar-vos do quarto para a pista de dança. Apanhar-vos quando ainda estão em casa e, depois, de uma forma meio caótica, conduzir-vos a uma festa.

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The party line 2015

Mas mesmo nas canções dessa festa encontramos versos que não são propriamente festivas. Essa ambiguidade revela-se desde logo na capa do álbum. Os corpos e rostos jovens, mas deformados, ciborgues. Dançamos, é certo, mas não sem algum desespero. O álbum chama-se Girls In Peacetime Want To Dance, mas não vivemos tempos de paz.
Nunca tentei esconder que tanto a capa como o título não devem ser lidos literalmente. Estava a pensar em qualquer coisa de nebuloso, um pouco à David Lynch. A rapariga está mutilada e nós, de certa forma, também o éramos quando começámos. Aos 18, 19 ou 20 anos, todos somos emocionalmente mutilados de alguma forma. Muita da minha música de dança preferida é muito negra. Quando passava música nos anos 1980, tocava hip hop repleto de imagens duras e violentas. O Blue Monday dos New Order, que é uma das minhas canções de dança preferidas, tem um lado negro. O engraçado é que foi um êxito monstruoso no Reino Unido. Ouvia-se em todo o lado. Nós jogámos com paradoxos desde o início. Queria sempre que a nossa música soasse ao Sugar sugar e adorava e ainda adoro os ABBA. Ao mesmo tempo, estava doente [Murdoch sofre de fibromialgia, ou síndrome de fadiga crónica], sem amigos, ainda a viver em casa dos meus pais, tão distante do Sugar sugar que só podia mesmo escrever letras sobre a minha situação, só podia escrever coisas como Judy and the dream of horses. A escrita surge agora de um sítio diferente, mas se pensarmos em Enter Sylvia Plath [do último álbum], é um pouco como os New Order ou o Smalltime boy, dos Bronski Beat, que é outra fantástica canção pop com tons negros.

Ao ouvir algumas das canções de Girls in Peacetime…, pergunto-me se, tal como nelas, estaremos destinados a falhar em cumprir os sonhos criados na adolescência? Se será esse falhanço condição própria de um envelhecimento normal?
Podemos ser esmagados por esse sentimento se pensarmos demasiado nele. Um dos meus filmes preferidos é My dinner with Andre [Louis Malle, 1981]. Um dos protagonistas diz: “Quando éramos novos estávamos extasiados pela dança, pela música, pela arte, e queríamos construir um teatro, queríamos envolver-nos, queríamos estar sempre rodeados pelos nossos amigos, mas agora só penso em dinheiro’. Para onde foi aquela sensação, aquele arrebatamento? Podemos olhar de tantas formas para a criança que fomos e questionar-nos sobre o que aconteceu àqueles pensamentos que tínhamos aos 13 ou 14 anos. Mas, além disso, podemos olhar para a geração dos nossos pais ou dos nossos avós. Há aqueles versos em Allie, “you made a list of all your heroes [/ and you thought about what they went through / it’s much darker, much harder, / than anything that happened to you]”. Nós tínhamos problemas emocionais esmagadores quando éramos adolescentes, mas eles viveram guerras, lidaram com fome, foram abusados violentamente pelo Estado. Nós remoemos as nossas pequenas coisas.

Mas vivemos actualmente tempos turbulentos. Uma Europa em crise, com guerra nas suas fronteiras, uma geração que luta para se manter à tona. Que nos tem a dizer, por exemplo, sobre o resultado das recentes eleições no Reino Unido?Sinto que foi a forma de a Grã-Bretanha procurar a mudança para não encontrar nada. Principalmente em relação à Escócia, que recorreu a um louco voto de protesto, em que o partido de esquerda tradicional foi completamente varrido pelos nacionalistas. Temos que alterar o nosso sistema de voto para um sistema de representação proporcional. Esta coisa dos dois partidos foi bom para tempos de guerra e para revoluções industriais, mas com as mudanças que conduziram às sociedades que temos hoje, não podemos manter estes partidos, basicamente iguais, que se limitam a movimentos milimétricos, ora para a esquerda, ora para a direita. As pessoas têm que votar naquilo que querem, e não para impedir que o tipo mau chegue ao poder. A Grã-Bretanha parece um país muito progressista, mas em muitas coisas está presa no passado. Estão a tentar abandonar o Euro e estão a tentar abandonar a Comunidade Europeia, o que é simplesmente absurdo. As pessoas ainda pensam na Old Britannia, ainda pensam que têm um Império. Acreditam mesmo nisso, mas têm que acordar para a vida. Detesto toda essa treta. Detesto a sensação de que aquilo que defendes na tua vida é algo que será nocivo para outros. Estou a falar especificamente do nacionalismo.

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Paulo Pimenta

É a favor de uma Escócia independente?
Votei a favor da independência no referendo, porque achei que tínhamos que lutar pela nossa representação e porque senti que seria uma oportunidade para guiar a Grã-Bretanha numa direcção diferente. Achei que valeria a pena abandonar o Reino Unido para que a Escócia se tornasse mais progressista, mas correu tudo mal. Perdemos o referendo e, depois, seguiu-se este bizarro voto de protesto.

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Belle & Sebastian no NOS Primavera Sound PAULO PIMENTA

Disse muitas vezes que a sua composição é uma forma de escape ao mundo que o rodeia, um escape para o interior de si próprio. Dificilmente o veremos, portanto, a compor uma canção sobre a independência da Escócia ou sobre quaisquer outras questões políticas.
Acho que o resumiu de forma precisa. Ao longo dos anos perguntaram-me muitas vezes se este ou aquele álbum era um álbum político, mas a verdade é que não posso fazer um álbum assim. Escrever canções é um escape, uma tentativa de construir qualquer coisa nova, de criar um mundo diferente. Ser um reflexo do mundo político que nos rodeia não funciona comigo.

O ano passado, com o filme God Help the Girl, tornou-se, além de músico, realizador e argumentista. Tendo em conta que, de certa forma, já é um argumentista nas canções que compõe, foi fácil passar para essa posição?
Escrever um argumento foi uma progressão natural da composição de canções. Sempre me preocupei com as personagens nelas inscritas. De repente, aquelas três personagens ergueram-se e não as pude ignorar. Como não se iam embora, transformei-as num filme. Por acaso, achei bastante fácil pô-las a conversar. É fácil teres as tuas personagens a balbuciar discursos intermináveis o tempo todo, o difícil é criar daí uma história, extrair daí um filme.

Se nos dissessem há uns anos que Stuart Murdoch, vocalista dos Belle & Sebastian, iria realizar um filme, apostaríamos, brincando com os clichés, que este teria como cenário Glasgow e que seria sobre jovens que procuram amor e salvação em música pop muito bonita e delicada. Foi precisamente esse filme que realizou.
Inicialmente pensei que, se só tivesse a oportunidade de fazer um filme, poderia confundir as pessoas e ter como cenário o espaço ou localizá-lo no século XVII, mas foi-me natural imaginá-lo como a capa de um álbum dos Belle & Sebastian a ganhar vida. Ainda tenho muito a aprender. Tinha que fazer uma coisa mais simples.

Mas é certo que o período da juventude em que vivemos as emoções de forma tão intensa, em que temos a música como guia para a vida e como aquilo que, em grande parte, nos define, continua a ser para si uma fonte de fascínio e inspiração.
Claro. Mas talvez precise de andar em frente. O grande acontecimento que poderá mudar isso, e que acho que me mudará, é ter agora um filho. Tem dois anos e mudou a minha vida em tantas coisas fundamentais que isso acabará por ser embrenhar em mim. Talvez comece a olhar o mundo de uma perspectiva mais adulta, mas não sei se isso me fará escrever sobre temas e questões adultas. Espero que sim, seria simpático. Acho que o mais provável é que regrida e que componha como se estivesse a escrever contos de fadas. Quando era pequeno os meus livros preferidos eram os de C.S. Lewis, as Crónicas de Nárnia, e sempre fantasiei o dia em que me sentaria a escrever óptimos livros para crianças. Portanto, talvez não passe a escrever para adultos, mas para crianças.

O que é que a paternidade alterou em si de forma tão fundamental?
Ainda tenho problemas com a minha saúde, com a minha energia limitada, por isso, não teria filhos se a minha mulher não tivesse lidado com o caso como um sargento-major: “Temos que ter!” Aterrorizava-me a ideia, e temos que trabalhar muito entre nós os dois para cuidar desta criança. Quanto ao que mudou, posso explicá-lo da seguinte forma. Sou um homem espiritual, vou à igreja e penso muito nas questões relacionadas com a religião. Assim que o Danny apareceu, percebi que a minha relação com ele, ingénuo, desprotegido e desconhecedor de tudo, é um espelho da minha relação com Deus. Senti isso distintamente. Acho que agora compreendo melhor como Deus vê o mundo. O meu filho é ignorante e ingénuo e claro que lhe perdoo tudo, claro que farei tudo por ele.

Talvez agora comece a ser um bocado menos o Stuart dos Belle & Sebastian para começar a ser Stuart, o pai do Danny.
Não julgo que afecte grandemente nesse sentido. Pelo menos desde 2000 que me sinto muito confortável com a banda. Demorou um bocado, mas sinto-me bem na pele desta pequena personagem sob o olhar do público. Desde essa altura que criei no meu diário uma persona, que era aquela pessoa que liderava a banda, muito diferente da que encontraria nos bastidores. Por acasoescrevi no diário esta manhã pela primeira vez em muito tempo, e comentei que 90 por cento do meu dia-a-dia é exactamente igual ao de toda a gente. A diferença é que, ao final do dia, escrevo um alinhamento e subo a um palco. A porção da minha vida que dou à banda será sempre a mesma e a minha família consegue acomodar isso.

Antes de formar os Belle & Sebastian, ocupava o tempo a magicar uma banda de sonho. A banda do sonho que mantém há quase vinte anos cumpriu as suas expectativas?
Confundiu as minhas expectativas. Lembro-me que desde muito cedo tinha a visão romântica de Morrissey a encontrar [Johnny] Marr, do poeta a encontrar a música, e achava que era isso que aconteceria comigo. Achava que iria encontrar uma mulher com quem iria compor, um pouco como Nancy [Sinatra] e Lee [Hazelwood]. É por isso, aliás, que a banda se chama Belle & Sebastian. O Sebastian iria encontrar esta rapariga, uma grande compositora, e juntos iriam fazer grandes canções. Não foi isso que aconteceu. Em tempos contei aquela história do Morrissey e do Marr numa entrevista e lembro-me que o Stevie [Jackson, guitarrista] a leu e ficou justamente irritado. “Que raio! O que achas que somos nós os seis?” Tinha toda a razão em sentir-se assim porque, 20 anos depois, temos esta banda fantástica e inesperada. É como dizem os Rolling Stones, “you can’t always get what you want”.

E duas décadas depois, ainda é possível manter a ligação emocional com canções, todas muito pessoais, como disse, que já cantou centenas de vezes em palco, ou elas tornam-se como que standards desligados de si?
É perfeitamente possível consegui-lo. Não digo que aconteça sempre, mas é em parte por isso que mudamos tanto os alinhamentos. A verdade é que se tocarmos o ‘[If you’re feeling] sinister' de vez em quando, no momento em que ouço os acordes iniciais sou imediatamente transportado para o momento em que a compus. Lembro-me das ruas de Glasgow por onde caminhei, de ser quarta-feira e de estar a chover perto do canal. É esse o poder da música. As boas canções preservam esses sentimentos para ti, mas não sei o que significam quando saem para o mundo. Espero que signifiquem algo para alguém.

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