Delírio de culto

É um álbum conceptual? É teatro pop? É uma fantasia cósmica? Tudo isso e nada disso exactamente.

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Capitães da Areia: é impossível saber hoje se se transformará em disco de culto, mas delírio de culto será com certeza DR

Não nos deixemos enganar pelas 31 faixas ou pelas dezenas de convidados, onde se misturam Capitão Fausto, José Cid, Rui Pregal da Cunha em dueto com Toy, Tiago Bettencourt, Tiago Cavaco e Samuel Úria, Lena d’Água, Miguel Ângelo ou o director artístico Manuel Fúria. Não nos deixemos enganar pela ideia de que um álbum que conta uma viagem pelo espaço, iniciada no Apolo 70, mítico centro comercial nas Avenidas Novas lisboetas, e que tem como capa uma homenagem a

Sgt. Peppers

, dos Beatles, será necessariamente um álbum conceptual. A banda que editou em 2011 

O Verão Eterno d’Os Capitães da Areia

, luminosa rodela pop, muito juvenil, muito pueril, muito de acordo com o título, não perdeu esse espírito. Libertou-o, antes, com uma ambição deliciosamente delirante. Algo que, esperemos, poderá ser testemunhado no concerto que os leva esta noite ao Lux, em Lisboa, onde serão acompanhados por Éme e Bispo no cartaz de mais uma noite Black Balloon.

O que é realmente este disco em que memórias dos Heróis do Mar se cruzam com os Of Montreal das tangentes ao disco, em que órgãos space-rock procuram sem pudor prazeres synth-pop, em que a bateria electrónica dos anos 1980 dá o ritmo e os sintetizadores conduzem, ora borbulhantes, ora com precisão de raio laser, toda a viagem? A verdade é que não sabemos. E a verdade, mais importante que a anterior, é que isso, neste contexto, é pouco relevante.

A Bordo do Apolo 70

 é teatro pop psicadélico e humor 

nonsense

 irrompendo pelo palco de um Parque Mayer intergaláctico. Põe Rui Pregal da Cunha em dueto com Toy, chama José Cid ou Bruno Aleixo para um interlúdio, coloca Lena d’Água em cena como sereia espacial ou os próprios Capitães da Areia em combate com outros graduados, os Capitão Fausto (belo encontro entra a pop robótica de uns e o psicadelismo sonhador dos outros). A meio, surgirá Tiago Bettencourt para assinar uma deliciosa balada folk com rima có(s)mica e aguçado sentido de auto-ironia, e, quase no fim, Miguel Ângelo, recitará a letra do seu “Um lugar ao sol” como poema salvador. Como é que isto poderia fazer sentido?

Os convidados asseguram as nuances (chegam Tiago Cavaco e Samuel Úria, por exemplo, e soltam-se batida e guitarra africanizada para melhor agitar a anca). O tom musical dado pelos Capitães, esse, mantém-se definido: camadas de teclados e batida sintética, Heróis do Mar e o “Cosmos”, vida terrena (louve-se a miúda bonita do cinema) e sonhos de ficção científica (a batalha com os Capitão Fausto acontece na galáxia de Cassiopeia). Tal acaba por ser o ponto fraco do álbum. A sua dimensão extravagante, e não poderia ser de outra forma tendo em conta o seu desgovernado processo criativo (isto é um elogio), não é totalmente suportada pela música. À medida que avançamos, perde-se o efeito de surpresa e, pela recorrência das soluções, a viagem, apesar de fantástica, começa a parecer longa demais. Falta-lhe o fôlego necessário à dimensão épica da obra. Será injusto, porém, ressalvar esse facto perante os outros. 

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DR
O Duelo dos Reis (com Rui Pregal da Cunha e Toy) Capitães da Areia
A Viagem dos Capitães Da Areia A Bordo do Apolo 70

 é um objecto ímpar. São os anos 1970 do 

Espaço 1999

, os anos 1980 da pop de fulgor lúdico e ambição futurista e a nossa era de zapping frenético. Uma matrioska de cápsulas do tempo montada com prazer evidente. Faz sentido? Porque raio teria que fazer? Existe. E ninguém suspeitaria que Os Capitães da Areia se pudessem lembrar de algo assim. É impossível saber hoje se se transformará em disco de culto, mas delírio de culto será com certeza. Não se esquece um álbum assim. 

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