O que acontece a uma prostituta quando envelhece?

Elas eram trabalhadoras do sexo. Envelheceram e agora vivem em comunidade na Casa Xochiquetzal, no México. “Las Amorosas Más Bravas” é um fotolivro que resulta de seis anos de trabalho da fotógrafa Bénédicte Desrus em cooperação com a escritora mexicana Celia Gómez Ramos dentro desta casa de repouso

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Las Amorosas Más Bravas fotografia de Bénédicte Desrus

Amalia tem 77 anos e vive na Casa Xochiquetzal. Actualmente vende roupas no bairro histórico da Cidade do México, mas antes era trabalhadora do sexo no mesmo local. “Quando és jovem, até os cães te vêm cheirar, mas quando envelheces passam a ignorar-te.” Usa uma peruca para confundir os que a procuram com o intuito de a matar. Todas as noites, há 22 anos, há vozes que a aconselham a fugir ou a esconder-se. É esquizofrénica.

Glória é viúva de três maridos. “Estão a puxar flores”, graceja. Foi com pena que aos 72 anos não conseguiu engravidar do seu namorado de 45. “Para mim não há nada melhor do que ter filhos com os meus homens. É por isso que trouxe 13 crianças a este mundo.” Foi alcoólica, foi vítima de violência doméstica e foi recentemente atropelada por um autocarro. “Desde aí que sou aleijada do cérebro.”

Normota tem mais vidas do que um gato. Foi lutadora de “wrestling” durante cinco anos, o seu cognome era “La Sombra”. É uma mulher corpulenta e sorri um largo sorriso de dentes partidos. Sempre preferiu mulheres ou transexuais. “Apercebi-me que os homens não me davam qualquer prazer, apenas as mulheres. Gosto de ternura, faz-me sentir segura.” Esteve presa muitas vezes e o seu corpo está coberto de cicatrizes. A mais visível é um olho que cegou numa luta de rua, graças a um golpe com uma chave de fendas.

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Celia Gómez Ramos, co-autora do livro Las Amorosas Más Bravas

Amalia, Glória e Normota são três das 26 residentes da casa Xochiquetzal, um lar de terceira idade no centro histórico da Cidade do México de características muito particulares: foi construído em 2006 com o objectivo de albergar exclusivamente ex-trabalhadoras do sexo em idade avançada.

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Na Casa Xochiquetzal Bénédicte Desrus

A fotógrafa francesa Bénédicte Desrus e a escritora mexicana Celia Gómez Ramos tornaram-se assíduas da Casa Xochiquetzal, graças à elaboração do livro “Las Amorosas Más Bravas” (“Tough Love”, na versão inglesa”), que é fruto de seis anos de trabalho.

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Na casa Xochiquetzal Bénédicte Desrus

Mulheres fortes e independentes


Tudo começou em 2008, quando Bénédicte Desrus, residente na Cidade do México há dois anos, foi convidada por um jornalista canadiano a fazer o retrato de Carmen Miños, na altura a directora da instituição. “Quando o terminei o retrato, disse ao jornalista ‘acho que vou voltar lá, preciso de saber mais sobre estas mulheres.’”. E assim foi. Após obter da instituição autorização para fotografar, passou a ser presença habital em Xochiquetzal. “Comecei por fotografar as mulheres que me davam permissão. Depois trazia-lhes algumas impressões e as outras exclamavam ‘uau, também quero uma fotografia minha’. Às vezes pediam-me dinheiro para as fotografar, mas nunca paguei por uma foto. Aproveitava quando me diziam isso e respondia-lhes ‘se queres uma foto tens de me pagar a mim’ (riso).”

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Bénédicte Desrus é fotógrafa e mora na Cidade do México

Bénédicte confessou ter tido dias difíceis, principalmente no início. “Elas são mulheres muito fortes e independentes. Têm muita dignidade, um excelente sentido de humor e personalidades muito fortes. Aprendi muito com elas, inclusive a ser mais tolerante e a defender-me – não é fácil ir lá todos os dias e passar lá muito tempo. Às vezes chega-se e está toda a gente feliz, toda a gente se ri; noutros dias estão todas de mau humor, discutem e dizem que não querem ver ninguém.”

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Capa do Livro Las Amorosas Más Bravas

A fotógrafa partilhou com o P3 um episódio que revela a tenacidade e robustez destas mulheres: “A Canela é a única residente com Síndrome de Down. Normalmente as pessoas com esta condição vivem poucos anos. Ela é a única pessoa na residência que nunca teve filhos e tem, neste momento, 76 anos. Uma vez lembro-me de ver a Canela muito doente. Tinha coágulos no sangue e estava ligada a uma máquina de oxigénio. Fui visitá-la e ela dizia ‘eu vou morrer, eu vou morrer’ e todas nós respondíamos “dúvido, dúvido” (riso). Às vezes dizíamos ‘ela nunca vai morrer’. Ela parece tão rija! No dia seguinte vi-a a vender cigarros e doces na rua. Exactamente no dia a seguir a estar ‘quase a morrer’! Aproximei-me e disse-lhe olá. Ela empurrou-me e disse ‘não tenho tempo para falar contigo, estou muito ocupada’ e começou a correr. Eu pensei ‘oh, meu Deus!’ (riso)”

Nenhuma revista ou publicação se interessou, inicialmente, pelo projecto. “Diziam-me ‘não é glamouroso’ ou ‘já publicámos algo sobre prostituição’. Não queriam nada relacionado com senhoras idosas. Bénédicte sentiu, então, ser necessário encher as imagens de histórias e tomou a decisão de estabelecer parceria com Celia Gómez em finais de 2011. Até então não fazia tenção de publicar o projecto em livro: “Achei que era uma visão diferente sobre a prostituição, uma vez que nunca nos perguntamos sobre o que acontece a uma prostituta quando envelhece. É comum vermos foto-reportagens sobre prostitutas nas ruas ou com clientes, mas nunca sobre o que lhes acontece quando se reformam.”

A existência desta casa deve-se ao esforço de um grupo de intelectuais e feministas locais, encabeçado por Carmen Muñoz, ex-trabalhadora de sexo. O trabalho sexual no México, à semelhança do que acontece em Portugal, não é criminalizado, mas tão-pouco é legal.

Um olho de cada cor

A fotografia de Desrus enfoca sobretudo em temas sociais. Questões relacionadas com direitos humanos ou com comunidades que vivem à margem da sociedade são o seu principal interesse. Não é, por isso, de estranhar que Bénédicte e Celia tenham dedicado parte dos proveitos financeiros desta edição ao financiamento da Casa Xochiquetzal. “Oferecemos 200 exemplares à residência, para que os possam vender directamente. As distribuidoras ficam, geralmente, 60% dos lucros. Nós imprimimos mil livros e apenas cem estão na mão de uma distribuidora no México. Quando as pessoas querem adquirir o livro, pedem-nos por email. A Celia e eu encarregamo-nos de enviá-lo pelo correio.”

A apresentação do livro gerou uma onda de solidariedade no México. As idosas estiveram presentes durante as sessões de apresentação do livro. “No final, pegavam no microfone e falavam e foi muito interessante ver as pessoas curiosas a fazer-lhes perguntas e a aceitá-las. Estas apresentações tornaram-nas visíveis e aumentaram o interesse na residência.”

Victoria fala “como um marinheiro” e tem um olho de cada cor. Viveu toda a vida rodeada de homens. Tem oito filhos, 14 netos e 14 bisnetos. Tem um espírito rebelde e indomável. “Gosto de sair, então quando me dizem que vivo numa casa de repouso respondi-lhes ‘terei muito tempo para descansar debaixo dos torrões.” Os seus filhos e netos visitam-na e é presença comum nas festas de família.

María Isabel é uma alma sensível. Gosta de poesia, é apaixonada pelo “Corvo”, de Edgar Allan Poe. Com apenas nove anos fugiu da aldeia onde crescia. “A minha mãe não acreditou nos abusos que sofri nas mãos do meu pai durante um ano inteiro. Peguei em algum dinheiro e fui para a paragem de camionetas com a roupa do corpo e uma caixa na mão.” É alta, morena, muito ágil para a sua idade – ainda é capaz de tocar com as mãos na ponta dos pés. Sonha, um dia, escrever a sua autobiografia.

Daniela sobreviveu ao terramoto de 1985. O tremor de 8.1 na escala de Richter abanou profundamente os princípios morais da rapariga que trabalhava em “El Cordial”, um cabaret, ao mesmo tempo que fez colapsar o edifício. “Este era um sinal de que a minha vida devia tomar outro rumo”. O abuso do álcool e as variações de humor extremas levaram-na à prisão e a diversas tentativas de suicídio. Tem três filhos. “Os miúdos estão no meu coração: um estudou Direito, outro é casado e a rapariga estudou computadores. Não os vejo.”

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