A psicose da faca tomou conta do Rio de Janeiro

A inexistência de um cadastro nacional faz com que o debate público sobre criminalidade juvenil seja suportado mais em impressões do que em informação. A discussão tem um forte pendor ideológico.

Foto

A morte de um cardiologista de 57 anos, Jaime Gold, que foi esfaqueado por dois jovens enquanto circulava de bicicleta na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, a 19 de Maio, e poucos dias depois o ataque contra uma turista chilena, atingida no pescoço numa esplanada da praça da Glória, no centro do Rio de Janeiro, gerou uma “psicose da faca” e reanimou os protestos contra a insegurança e a violência na cidade a um ano dos Jogos Olímpicos.

Uma sucessão de ataques violentos sob a ameaça de armas brancas, habitualmente para o roubo de pertences (bicicletas, roupas, telemóveis) em bairros nobres do Rio de Janeiro, criou a percepção de uma nova onda da violência urbana, embora as estatísticas desmintam a existência de uma variação significativa do número de ocorrências desde o início do ano face ao período homólogo. Ainda assim, segundo o jornal O Globo, só entre Janeiro e Abril, os quatro maiores prontos-socorros da cidade atenderam 167 vítimas de golpes e facadas: o medo de um ataque já levou à mudança de uma série de hábitos e comportamentos, desde a prática desportiva no espaço público às saídas nocturnas.

Grupos de jovens a deambular sem destino aparente ou “de guarda” a locais como esplanadas ou entradas de cinema e centros comerciais tornaram-se automaticamente suspeitos após as reconstituições dos crimes terem apontado para a repetição do mesmo modus-operandi: adolescentes que actuam em conluio, abordam a sua vítima e não se detém perante o movimento à sua volta. “Furam primeiro e perguntam depois”, resume um observador.

Neste contexto, medidas lançadas pelo governo estadual em reacção à crise, como por exemplo a criminalização do porte de arma branca ou a autonomização do roubo de bicicleta como um crime específico, deverão passar facilmente pelo crivo da legislatura. Também o apoio a iniciativas federais, nomeadamente a proposta de emenda constitucional para a redução da maioridade penal para os 16 anos.

Um dos três suspeitos detidos após a morte do médico Jaime Gold é um jovem de 16 anos, que já foi detido e libertado 15 vezes por crimes de furto e de roubo com violência em zonas residenciais de classe média e alta. Uma das últimas vítimas desta violência, este mês, foi uma designer de moda, Nathália Labanca, que foi atacada por três menores na Tijuca – segundo o seu depoimento, um deles não aparentava ter mais de oito anos.

Para o presidente da organização não-governamental Rio de Paz, António Carlos Costa, que foi entrevistado pelo El País a propósito do recente fenómeno das facadas no Rio, estes agressores enquadram-se num perfil típico: “São meninos muito novos que descem os morros com dois objectivos: roubar bicicletas ou roupas como símbolo de status e para ganhar visibilidade na comunidade com as suas proezas, como fonte de poder” .

A inexistência de um cadastro nacional com os registos dos crimes atribuídos a menores – um mapa da criminalidade juvenil – faz com que o debate público seja suportado mais em dados e impressões casuísticas do que em informação ou séries estatísticas. A discussão tem um forte pendor ideológico.

Num esforço para compor um retrato nacional, o jornal Folha de São Paulo solicitou informações aos 27 estados da federação: com base nos registos enviados pelos nove que responderam, o diário desmentiu um dos argumentos do Ministério da Justiça, que atribuía aos menores de idade a responsabilidade por apenas 0,5% dos homicídios no Brasil. Mas segundo verificou a Folha, em sete dos estados avaliados, a participação de menores em homicídios era igual ou superior a 10% do total de casos com autoria conhecida.

Nalguns casos, esse valor era dramaticamente mais alto, como por exemplo no distrito federal de Brasília, onde 30% dos homicídios envolvem um menor, ou no Ceará, onde são 30,9% - mas essas estatísticas são de todos os crimes violentos letais intencionais, e não apenas de homicídios. Aliás, a análise dos crimes mostra que a maior parte dos incidentes mortais que envolvem menores têm a ver com roubos violentos.

De acordo com a Folha, a informação recolhida também permitiu identificar a população adolescente entre os 16 e 17 como um dos principais grupos de risco de violência: apesar de compor apenas 3,6% do total da população, representam 6,6% das vítimas de homicídio no Brasil.
 

   


 

   

Sugerir correcção
Comentar