Esvaziar diferença entre esquerda e direita é “substituir democracia por demagogia”

A esquerda e a direita ainda fazem sentido? Mais do que nunca, defende Rui Tavares no livro lançado este mês. Sem esses pontos cardeais, o que resta é dizer às pessoas “venham atrás de mim”. E “a conquista civilizacional da modernidade foi precisamente a de não irmos atrás de ninguém”.

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Rui Tavares lançou mais um livro Rui Gaudêncio

O livro nasceu de duas conversas. Uma foi a convite do eurodeputado social-democrata Carlos Coelho. O tema era "Fazem ainda sentido a esquerda e a direita?" e o oponente do historiador Rui Tavares, também líder do Livre/Tempo de Avançar, era Miguel Poiares Maduro, o ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional. Rui Tavares não teve, nem tem dúvidas: “Não só fazem ainda sentido, como mais sentido ainda dada a actual crise europeia e global.”

É assim que começa o livro de Rui Tavares, Esquerda e Direita, Guia Histórico para o século XXI, editado pela Tinta da China e que foi apresentado neste mês na Feira do Livro de Lisboa, precisamente por uma pessoa de esquerda - o candidato a Presidente da República Sampaio da Nóvoa - e uma de direita - o poeta e crítico literário Pedro Mexia.

A segunda conversa que inspirou o livro foi entre Rui Tavares e Pedro Mexia, na Universidade de Coimbra: o ex-eurodeputado explicaria o que é ser de esquerda, Mexia ficaria com a direita.

Curiosamente, recorda o autor na obra, os dois debates ficaram marcados pela polémica. No primeiro, Rui Tavares foi criticado por aceitar conversar com “gente do ‘outro lado’”; no segundo caso foi o próprio director da Faculdade de Direito de Coimbra que não autorizou a realização de uma discussão ideológica naquelas instalações. Foram para o edifício das Matemáticas.

O livro recupera a história de 225 anos da esquerda e da direita e problematiza-a, enquadrando-a na actualidade e perspectivando o futuro. A tese que Rui Tavares defende é a de que não só a esquerda e a direita ainda fazem sentido hoje, como são mais relevantes do que nunca, tendo em conta, entre outros aspectos, os novos desafios que a democracia enfrenta no seio da Europa e do mundo.

“As tentativas de esvaziar as diferenças entre esquerda e direita, e de negar a relevância política dessas diferenças, acabam por substituir – de forma interesseira ou não, inconsciente ou não – a democracia pela demagogia”, escreve Rui Tavares.

Porque, “se excluirmos os pontos cardeais, as direcções de trânsito e até os mapas que tentam aproximar-se sempre imperfeitamente da realidade, a única coisa que nos resta dizer às pessoas é ‘venham atrás de mim’.”

E “essa é a figura do demagogo”: “Aquele ou aquela que diz ‘vocês não precisam de diferenças de opinião política, venham atrás de mim porque eu sei decifrar os mercados’, ou ‘venham atrás de mim porque só eu sei combater a casta’, ou venham atrás de mim porque eu trago o fim dos corruptos’.”, justifica o autor, para quem “a conquista civilizacional da modernidade foi precisamente a de não irmos atrás de ninguém”. “Nem rei, nem patrão, nem sacerdote, nem autoproclamado profeta. Lográmos chegar a um ponto em que podemos ir uns ao lado dos outros, ir por caminhos comuns ou alternativos, caminhar sozinhos até, quando e se o desejarmos”, lê-se na obra.

Mas para isso, prossegue o escritor, “não só continuamos a precisar de palavras que descrevam o caminho – como ‘esquerda’ e ‘direita’ -, como até devemos recuperar e enriquecer o vocabulário aplicado à paisagem ideológica”: “A um nível mais profundo, há que revalorizar e reaprender os significados do progressismo e do conservadorismo, do liberalismo e do socialismo, do libertarismo e do ecologismo, do comunitarismo e do cosmopolitsimo, e acrescentar-lhes as novas palavras que acháramos menos imperfeitas para conseguir mapear a nossa realidade.”

Aliás, nunca, como agora, precisámos tanto destas palavras, defende o historiador. “A crise da viragem do século, nos seus múltiplos aspectos – das finanças e da globalização, das migrações e da integração, da tecnologia e do ecossistema -, só poderá ser eficazmente encarada se tivermos uma linguagem partilhada que nos permita expandir a democracia como comunidade de destino.” Por isso, esquerda e direita “não só subsistem, como são hoje uma distinção mais importante, mais operativa e mais relevante”.

“Vontade de conversar”
Nem sempre, como neste caso, as apresentações de livros de políticos ou sobre política, cruzam pessoas de direita e de esquerda. O politólogo André Freire – candidato a deputado nas primárias do Livre/Tempo de Avançar – salienta, porém, que neste caso se trata de um livro “sobre ideias, sobre uma ideia, a de esquerda e de direita” e que essa ideia pressupõe o “pluralismo político”.

Os convites a Sampaio da Nóvoa e Pedro Mexia partiram de Rui Tavares e da editora: “São duas pessoas que admiro e respeito”, justifica o autor ao PÚBLICO, fazendo, no entanto, questão de separar o seu lugar enquanto líder do Livre/Tempo de Avançar - que irá referendar a escolha do candidato presidencial – e o seu papel enquanto historiador. Ainda assim, admite que “Sampaio da Nóvoa tem tido uma relevância muito grande nos últimos tempos, na tentativa de fazer um diálogo nacional”.

Para o autor, apesar de fazer sentido vincar as diferenças entre esquerda e direita, tal não significa que não deva haver diálogo: “Pelo contrário, esquerda e direita aparecem como possibilidade a partir do momento em que se abre uma janela histórica para a deliberação colectiva”. A partir de 1789, são os “grandes conjuntos de ideias que, mesmo evoluindo com o tempo, nos dão a noção clara por onde queremos ir”. E, “quanto mais forte e claro for esse debate, mais preparada está a sociedade para decidir sobre esses destinos”, nota Rui Tavares que quer ainda fazer um debate com os que estiveram na génese do livro, o social-democrata Carlos Coelho e a Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Para Pedro Mexia, “o livro tem a especificidade de ser sobre esquerda e direita” e, dada a natureza do tema, “fazia todo o sentido ter apresentação de pessoas diferentes”. O crítico literário reconhece porém, que em geral o que acontece com os livros políticos ou de políticos é que são apresentados, consoante a área partidária, por alguém de esquerda ou de direita, o que “empobrece o debate”: “Revela um entendimento pobre da democracia, mas cada um tem liberdade de escrever o que quer e ter quem quiser a apresentar. Mas é verdade que o diálogo não é regra.”

O poeta lamenta que continue a haver quem “jamais” aceitasse que um livro fosse apresentado ou comentado por alguém fora da sua “tribo política”: “É um mal que existe na política ou na cultura em Portugal”, diz, salientando que, nos últimos anos, e sobretudo com a crise, essa “conflituosidade ou acrimónia” foi crescendo. Mas, remata o crítico que é de direita, o livro de Rui Tavares “tem essa vontade de conversar”.

Embora tanto André Freire como Pedro Mexia distingam um livro como o de Rui Tavares, sobre ideias, das biografias que têm sido lançadas, a poucos meses das eleições legislativas, não deixa também de ser uma obra de um líder de um partido, o Livre/Tempo de Avançar. Mexia não vê qualquer problema em “alguém que está num projecto político aparecer e marcar a sua posição”, mas defende que “não faria diferença, se o livro tivesse sido publicado só depois das eleições”. Porque, justifica, “tem dimensão histórica, faz parte de um discurso intelectual”.

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