Uma anedota nacional

Pouca gente se apercebeu do escândalo que constitui o chamado “caso da linha da Lousã” ou do “Metro Mondego”. Eu conto.

Há alguns anos, tendo sido convocado para uma reunião científica em Lisboa, resolvi perguntar a uma funcionária administrativa da instituição — com um certo “acanhamento provinciano”, que até se denuncia nas despesas que se faz por conta de outrem — se poderia ir num “Alfa”. Disse-me do outro lado do telefone que a instituição pagava uma verba única para as despesas de deslocação, num Alfa Romeo como noutro carro qualquer! Tive de desfazer o engano. Eu tinha apenas um pequeno automóvel…

Do que se tratava apenas era se me poderia deslocar no Alfa Pendular, que é, como se sabe (embora a funcionária não o soubesse), o comboio mais rápido e mais caro que estabelece ligação entre Lisboa e o Porto ou Braga, passando por Coimbra. A partir dai, por vezes utilizo esta anedota sem graça para falar, não de um equívoco da linguagem, aliás natural, mas de como alguns “lisboetas”, que nem sempre são de Lisboa, desconhecem o que o que diz respeito à “Província” que — como digo também, só por ironia — visitam por vezes como quem vai ao Jardim Zoológico ver os animais exóticos ou ao Jardim Botânico ver as plantas estranhas. Preconceito lamentável de quem, como eu, gosta tanto de Lisboa e que tem tantos amigos alfacinhas, mas não perdoa o centralismo deste país tão pequeno.

Digo isto porque na “Capital” e, sobretudo, nos meandros do Poder, pouca gente se apercebeu do escândalo que constitui o chamado “caso da linha da Lousã” ou do “Metro Mondego”. Eu conto — na generalidade somente, pois tem muitos pormenores, alguns que desconheço também — para quem não sabe, em Lisboa, no Porto ou em outro lugar qualquer (a gente do Tua, a jóia da coroa das ferrovias antigas portuguesas, também sacrificada, sabe-o com certeza).

Nos anos 90 do século passado começou a falar-se em Coimbra da construção de um “Metro ligeiro de superfície”. Devo confessar que nessa altura — eu que não conhecia os metros ligeiros, pois nunca tinha ido, por exemplo, a Bordéus, onde fui depois — respondi, numa pequena entrevista a um jornal de Coimbra, que não me parecia que a nossa cidade precisasse de um Metro, mas defendi que fossem melhorados os transportes públicos já existentes e que se repusesse, ao menos, uma linha de carro-eléctrico, que um inteligente presidente da Câmara teve a ousadia de extinguir totalmente (para bem do “Progresso”…, claro!). O certo, porém, é que a empresa do Metro de Coimbra (Metro Mondego SA, com capitais maioritários do Estado) lá se formou, organizando-se tudo para ligar a baixa de Coimbra aos lugares periféricos e à Lousã, cuja linha ferroviária, no seu início (grande originalidade!), atravessava o centro da cidade, pondo em pânico peões e automobilistas, e ultimamente partia do fim do Parque da Cidade Manuel Braga.

Para a construção desse Metro expropriaram-se casas para fins considerados de “interesse público” e descompuseram-se ruas históricas. O povo já antes chamava àquela área sacrificada, que deveria vir a ser o termo urbano do Metro, “Bota-Abaixo”, por se terem destruído há anos alguns edifícios com a ideia de se fazer ali uma “avenida central”, e com mais razão passou a chamá-la assim. Fizeram-se depois várias obras e começou a reconstruir-se a área do caminho-de-ferro da linha da Lousã, que começa em Coimbra, passa pela vila de Miranda do Corvo e chega à Lousã e a Serpins (o plano inicial — que nunca se concretizou — levava a linha férrea para o interior até à vila de Arganil). Finalmente — com a promessa de que tudo se refaria com o tal “metro ligeiro de superfície”, o que aliás provocou um aumento de construção nas vilas referidas e com a compra ali de casas e apartamentos para habitação (“com metro à porta”) — foi levantada a linha ferroviária, que ia cumprindo o seu dever há mais de 100 anos, recentemente com automotoras em que viajei.

Após tudo isto e de muitos milhões de euros já gastos, ficámos por aqui, sem linha férrea e sem metro, vítimas da austeridade doentia que tem caracterizado a política deste Governo e desta “Europa”, que ao mesmo tempo permitiu um não menos doentio consumismo que destruiu o tecido comercial deste país, como sucedeu em Coimbra, cercada de “grandes superfícies” que afogaram o centro, enquanto se destruía também o tecido industrial. As “ruínas da indústria” tenho-as eu gravadas numa série de fotografias, que comprovam esta vergonha nacional de falta de planificação e agora em busca de “empreendedorismo”.

Pois bem, Amiga Inês — que habita nos subúrbios de Lisboa e que me interrogou um dia sobre esta “estória” — agora já sabe o que é esse estranho “caso da linha da Lousã” ou do “Metro Mondego”, que o ministro Poiares Maduro, que é da região de Coimbra, tão bem conhece e em relação à qual devia envergonhar-se. Mas esse traz a bandeira portuguesa na lapela e veio de Florença, como proclamava quando se tornou ministro, para apoiar este país — para “salvar Portugal”! Tristes salvadores estes que colocam o povo numa situação de ruína, gabando-se, todavia, da sanidade das finanças!

Já que vivem em Lisboa, imaginem que se destruía a linha de Sintra (já nem falo da de Cascais) com a promessa de ali ser colocado um moderno “metro ligeiro de superfície” e se ficava (em regresso ao passado) por um ronceiro transporte de camioneta, em curvas e contracurvas. Talvez então caísse o Carmo e a Trindade. No Porto, se se destruísse a linha da Póvoa e não se tivesse construído o Metro, mover-se-ia a torre dos Clérigos. Mas, por aqui, a setecentista torre da Universidade, que faz parte do Património da Humanidade da UNESCO, não se move. Galileu teria dito do movimento da Terra à volta do Sol: E pur si muove, “E no entanto move-se”. Talvez a nossa cidade também se mova, como se têm movimentado, no entanto sem qualquer resultado, os municípios limítrofes. Seja como for, esta é uma das “anedotas nacionais”.

Mas um historiador, mesmo vestindo somente o traje de cidadão, não conta anedotas. Peço por isso desculpa aos leitores. Teria de pedir auxílio ao Bartoon do Luís Afonso, de que sou incondicional admirador. Mas, gostaria ao menos que um novo Governo — melhor seria uma outra concepção de cultura política — apagasse de vez esta anedota, que se passa na região de Coimbra, mas que é, na verdade, uma “anedota nacional”. Como muitas outras, que comprovam, na verdade, o esquecimento dos poderes pelo país onde vivemos…

Professor catedrático aposentado da Faculdade e Letras da Universidade de Coimbra, historiador

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