Yes, Xi can?

O Presidente americano fez do desafio chinês a sua prioridade estratégica “número um”. A relação entre a superpotência vigente e a futura determinará, em boa medida, o que será o mundo dentro de algumas décadas.

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1.O historiador britânico Timothy Garton Ash dedicou a sua última coluna no Guardian à China, que visitou recentemente, chamando a atenção para uma série de mudanças fundamentais para o futuro. Tentou aceder ao Google ou ao gmail, mas não conseguiu, ao contrário de anteriores visitas.

Sentiu “um real nervosismo entre intelectuais que, há um par de anos, falavam muito mais livremente”, mostrando que “os limites do que pode ser dito em público parecem reduzir-se constantemente.” O título da sua coluna resume o essencial: “Perspectivas para a guerra ou a paz na Ásia-Pacífico dependem do sucesso interno da China”. O ponto de partida é a nova liderança chinesa e os desafios gigantesco que tem pela frente, o primeiro dos quais é gerir uma aterragem suave da economia chinesa, que já não pode ser apenas a fábrica do mundo graças à mão-de-obra barata, e que precisa de um novo modelo de desenvolvimento mais equilibrado. Xi Jinping, o novo líder chinês, está a fazê-lo com mão de ferro. Centralizou nas suas mãos um poder imenso sobre o partido, sobre o Estado, sobre os militares, endureceu as regras internas e fez do combate à corrupção dentro do Partido Comunista uma das suas prioridades. Está também a mudar a política externa chinesa num sentido mais global e muito mais “afirmativo”, deixando para trás o “peaceful rising” de Deng (não fazer ondas para não perturbar o objectivo principal que era o desenvolvimento económico) e abrindo as portas a uma nova fase que muitos analistas designam por “not so peaceful rising”.

2. Garton Ash esteve em Washington antes de visitar Pequim e pode assistir ao debate cada vez mais intenso sobre se a estratégia de Obama é a mais adequada ou se há necessidade de uma mudança que leve em conta esta nova “afirmação” da China no mundo, por vezes através de meios militares, como está a acontecer no Mar da China do Sul.

O Presidente americano fez do desafio chinês a sua prioridade estratégica “número um” (ainda que tenha passado a vida a acorrer a outras situações imediatas, desde o Irão até à Rússia, passando pelas novas formas de terrorismo cristalizadas no chamado Estado Islâmico). A relação entre a superpotência vigente e a futura determinará, em boa medida, o que será o mundo dentro de algumas décadas. Hillary Clinton foi a intérprete desta política, estabelecendo a cooperação com Pequim nos domínios possíveis, ao mesmo tempo que renovava o compromisso americano com a segurança dos pequenos países que rodeiam o gigante chinês. É uma política que tenta equilibrar cooperação e contenção. A aliança com o Japão foi revigorada, embora persista uma grande desconfiança em Tóquio sobre o grau de empenhamento americano na sua segurança, em caso de problema sério. A sucessão de pequenos conflitos com a China por cauda de uma ilha deserta no Mar da China Oriental já levou o Japão a melhorar a sua capacidade militar, limitada à “autodefesa” imposta pelos americanos depois da II Guerra. O nacionalismo retórico que caracterizou a primeira fase do governo de Shinzo Abe não ajudou em nada, embora esteja hoje atenuado. Não é só na Europa que a História continua à flor da pele. Os países ribeirinhos do Mar da China do Sul (Vietnam, Filipinas, Malásia, Brunei e Taiwan) estão a reagir contra a construção de uma ilha artificial sobre um recife de corais onde Pequim quer instalar uma base militar, alegando que são águas territoriais chinesas. A disputa trava-se em torno dos arquipélagos das Spratlys e das Paracels, ignorando as advertências de Washington, os protestos desses países e as decisões do tribunal arbitral da ONU. Basta olhar para um mapa para perceber a sua importância estratégia no controlo de rotas marítimas fundamentais: passam ali 5 triliões de dólares de mercadorias por ano.

3. Não se trata apenas da deslocação da riqueza para Leste, trata-se de uma zona do globo onde a ascensão da China está a provocar sérias tensões e onde a corrida aos armamentos, não apenas do lado chinês mas de todos os países que a vêem como uma potencial ameaça, não augura nada de bom. Como diz o historiador de Oxford, se as coisas correrem bem a nível interno (o que está longe de ser garantido), “o capitalismo ocidental, liberal e democrático, terá um competidor ideológico com um apelo mundial, sobretudo no mundo em desenvolvimento.” Mas este não é o pior cenário, como ele próprio reconhece. “Um regime comunista em crise teria muita dificuldade em resistir à tentação de usar a carta nacionalista de forma muito mais agressiva, pelo menos na sua vizinhança.”

Os sinais são ainda contraditórios e exigem dos EUA uma grande ponderação. Não são apenas os pequenos jogos de guerra no Mar da China que os americanos têm de gerir com prudência. Só na semana passada dois ciber-ataques a sistemas militares e civis muito sensíveis vieram lembrar uma nova forma de “guerra” que é preciso prevenir. Outro sinal recente e preocupante: a decisão chinesa de equipar os mísseis de longo alcance DF-5 com múltiplas ogivas nucleares em vez de uma só, quando os EUA e a Rússia estão a fazer o contrário. Por enquanto, nem a China nem ninguém consegue aproximar-se sequer da capacidade militar americana. Mas as coisas não são assim tão simples.

4. E a Europa no meio disto tudo? A União Europeia está muito longe de ter qualquer estratégia face à China, que ultrapasse as relações comerciais e a competição interna para ser o melhor amigo de Pequim. A última triste demonstração pública foi a corrida desordenada entre os grandes países europeus para serem fundadores do novo Banco Asiático de Investimento e Infra-estruturas de iniciativa chinesa. O problema é que a China tem uma estratégia para a Europa que está a pôr em prática meticulosamente. No mês passado, aproveitando o 40º aniversário do estabelecimento de relações entre Bruxelas e Pequim, o primeiro-ministro chinês visitou as sedes das instituições europeias para dizer as mais belas palavras de amizade, desafiando os europeus a aprofundar as relações a todos os níveis. Não se trata apenas de economia. A China parte do princípio de que será bom para a sua afirmação mundial dividir os dois lados do Atlântico.

A crise europeia ofereceu-lhe uma oportunidade de ouro que não vai desperdiçar. Enquanto olha, horrorizada, para a forma como os europeus se gerem a si próprios, vai aproveitando a vulnerabilidade dois países do Sul e do Leste para criar as bases que lhe podem abrir caminho para a Europa mais rica em áreas que considera fundamentais, incluindo de alta tecnologia. E se há exemplo acabado desta estratégia, ele está em Portugal. O capital chinês, estatal ou privado, comprou algumas empresas estratégicas (por exemplo, a REN), lançou-se nos seguros (com a compra da Fidelidade à CGD) e prepara-se agora para entrar na banca com a aquisição do Novo Banco. Os chineses ganham porque pagam mais do que os outros e não porque trazem consigo melhor gestão e melhor tecnologia. O que é mais preocupante é que ninguém discute sobre isto, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Não passa pela cabeça dos nossos governantes olhar para o que se está a passar no Mar da China do Sul. A generalidade dos analistas acha que, em tempo de “guerra”, não se limpam armas. Portugal tinha e tem interesse em desenvolver relações comerciais com a China, sobretudo na região de Cantão e através de Macau, mas nunca houve uma estratégia para tirar partido desta antiga proximidade. Tudo o que o Governo sabe é entrar na competição de quem é o “melhor amigo” da China (que nunca ganhará), às vezes de forma patética, invocando laços históricos que não soube aproveitar quando devia.

Podemos vender à China as nossas empresas mas, no mínimo, convinha discutirmos os riscos. Regressando a Garton Ash, ainda não temos resposta para a questão fundamental: “Yes, Xi can?” Ninguém sabe.

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