Vendeu-se a TAP, tendo-se vendido também um pouco de Portugal

Se a venda por 10 milhões de euros é puramente simbólica, é uma má decisão política porque permite que este livro europeu se venda por uma capa nacional e pobretanas

Foto
Rafael Marchante/Reuters

Sendo eu defensor de uma economia mista, sou completamente contra, por princípio, à privatização daquilo que se designa, em economês, como monopólios naturais (a decisão política dos últimos anos que mais me arrepia é a privatização da REN, ainda por cima a um outro estado, no caso o chinês).

Não sendo a TAP uma empresa monopolista tradicional, é-o no sentido em que tem um estatuto especial de "flag-carrier" do nosso estandarte verde-rubro que confere ao seu modelo de gestão um sentimento especial de nos pertencer, a todos nós enquanto nacionais que partilham essa identificação com Portugal. 

Infelizmente, essa mesma identificação fez com que a empresa tomasse decisões absurdas baseadas na ideia da língua e de como isso teria um valor maior para o consumidor final superior ao de comprar uma mesma viagem, por uma fracção do preço, online, quando se quer viajar para um qualquer destino europeu.

Aumentou-se o investimento (público) no ruinoso negócio do Brasil, que aterrou com o grupo TAP em dois tempos, só porque este era o nosso país irmão e pensando-se que isso bastaria para que viessem milhões de reais capitalizar uma empresa que é demasiado grande para o seu mercado natural (só ter de negociar com 17 sindicatos deve tirar o cabelo a qualquer um).

E, na sequência de dezenas de decisões, como essa tomada pela administração da empresa com a conivência e apoio político dos diferentes governos desde o primeiro governo de Guterres, o grupo encontrou-se na situação actual de falência técnica, e a precisar de uma rápida injecção de capital, sob pena de ter de fechar.

E eis que perante isso chegamos ao ponto fundamental: a impossibilidade, perante as regras europeias de capitalizar com dinheiros públicos uma empresa de aviação civil e daí resultar a privatização da nossa "flag-carrier" com a urgência que foi realizada.

Num mercado altamente concorrencial, em que uma companhia alemã, "low-cost", francesa, chinesa, turca, pode fazer a mesma linha que a TAP, a Comissão Europeia, com o seu braço armado, a Direcção-Geral da Concorrência, proíbe, a não ser em circunstâncias extremamente excepcionais que dinheiros públicos entrem em empresas de aviação civil, sob pena de isso ser considerado concorrência desleal no mercado único europeu (o que já valeu a Portugal ter processos sobre esta matéria na tal DG da concorrência).

É em pontos como este que o tal mantra muito "syrizante" de que uma outra Europa é possível e desejável, porque neste caso uma política da Comissão (que todos fomos chamados a eleger, via Parlamento Europeu) mais respeitadora das autonomias dos 28 governos, poderia dar espaço aos Estados-Membro para que pudessem optar por ter diferentes políticas de apoio às suas empresas de aviação. Em termos comparativos, como é consultável nesta tabela, a política da Comissão tornou praticamente impossível, nos países com os quais nos gostamos de comparar, a propriedade ou o controlo público das empresas irmãs da TAP.

Se a venda por 10 milhões de euros é puramente simbólica (porque o verdadeiro valor do negócio está na dívida assumida e no capital que vai entrar para sustentar a empresa), é uma má decisão política porque permite que este livro europeu se venda por uma capa nacional e pobretanas. Mas nenhum outro Governo faria diferente, a não ser, possivelmente no valor do símbolo que pediria ao comprador.

As verdadeiras vítimas deste processo são as centenas de trabalhadores da empresa, que em nada contribuíram para este desfecho, e que vão ver a sua segurança laboral e os seus direitos bastante ameaçados.

Mas o fervor nacionalista (no melhor dos sentidos) que esta decisão provocou pode ter (vamos ter esperança!) um efeito pedagógico: da próxima vez que formos todos chamados a eleger uma Comissão, talvez percebamos melhor a importância da Europa (e da sua integração económica e monetária) e de como não podemos trocar esse voto por um dia de praia ou uma ida ao cinema. Porque se o fizermos, 10 TAPs se seguirão.

Sugerir correcção
Comentar