Menos literatura, por favor

Numa entrevista a este jornal (por Isabel Coutinho e Isabel Salema), publicada no passado domingo, José Manuel Cortês, à frente da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, repete dez vezes a palavra “promoção”. Devemos concluir que é a sua palavra-maná, o ídolo capaz de interceder na ampliação de um espaço público para a literatura. E, exigindo aos escritores o que muitos deles já fazem por gosto ou por imposições das editoras, chega a dizer que o trabalho destes “não é estritamente escrever, mas é também promover a sua obra”. Este discurso situa-se claramente num horizonte publicitário. Nesse horizonte, podíamos colocar as “manifestações culturais” que já ninguém sabe o que elas verdadeiramente manifestam, onde actuam os escritores enquanto saltimbancos: apresentações, lançamentos itinerantes em vários actos, sessões públicas, leituras, mesas-redondas, intervenções, debates, conferências, colóquios. Tudo isto, que outrora reclamava quase sempre um vínculo com o saber, a cultura e a ciência foi apropriado pela grande empresa da “promoção”. Para José Manuel Cortês, a manifestação cultural de maiores potencialidades “promotoras” é o “festival literário”, esse grande exemplo de espectáculo de variedades que leva às últimas consequências a regra de ouro das manifestações culturais onde se apresentam e se manifestam escritores: é preciso que eles falem de qualquer coisa, mas nunca de literatura. E José Manuel Cortês cita o bom exemplo dos países que até já têm uma “rede de festivais literários”. Este discurso da “promoção” da leitura e do livro está certamente cheio de boas intenções, mas em nada se distingue do departamento comercial de uma grande editora. E já era altura de uma entidade como a Direcção-Geral do Livro perceber aonde nos levou a ideologia da “promoção” festivaleira e a obediência aos ditames do “capitalismo cultural”. Se as multidões que acorrem aos festivais literários e outras manifestações onde se exalta o valor de certos livros e da literatura criassem uma verdadeira esfera pública literária, a grande república das letras estaria resplandecente. A crença de José Manuel Cortês e dos organismos públicos como aquele que ele dirige é a de que até as manifestações medíocres de “promoção” vão progressivamente produzindo bons efeitos. Ora, o que se passa é exactamente o contrário: dando meios à mediocridade cultural, a única coisa que se consegue é amplificar a mediocridade. E o público que se mobiliza para essas manifestações – onde muitos, por crença ingénua ou interesse estratégico, vêem sempre uma promessa de futuro – não se satisfaz com o puro entretenimento, sente-se legitimado pela convicção de que se ocupa de problemas importantes e aparentemente sofisticados. Esta semi-cultura de quem está persuadido de que participa num importante empreendimento cultural é muito mais nefasta do que a pura ausência de cultura. O modelo da “promoção” que perpassa em todo o discurso de José Manuel Cortês é o da “democracia cultural”, sob a forma de mediocridade pública. Ele não quer ver que as formas de “promoção” do livro e da leitura, como aquelas que têm vigorado, se baseiam numa imitação dos mecanismos comerciais que, prometendo uma maior difusão e facilidade de acesso (veja-se a história das livrarias), resultaram num afunilamento drástico da diversidade e na aniquilação da qualidade. O festival literário não precisa de ser “promovido”, é a regra permanente em que vivemos. Uma Direcção Geral do Livro à altura da sua missão só poderia fazer uma coisa: despromovê-lo.

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