Pelo amor à colecção Vampiro

Raphael Montes quis ser escritor aos 12 anos. Tem 24, dois romances publicados, adaptações ao cinema previstas e traduções pelo mundo fora. É o novo garoto do noir brasileiro.

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NUNO FERREIRA SANTOS

Raphael Montes tem um Top 5 dos livros policiais que mais gostou de ler até agora. É o Top 5 dos seus 24 anos, já que o brasileiro nasceu em 1990. Não se sabe se daqui a um ano será o mesmo. Certamente que não. Ele continua a ser um leitor voraz apesar das viagens para promoção dos livros, dos festivais, dos cursos de escrita e dos argumentos para séries de televisão e cinema em que tem trabalhado além da crónica que escreve para o jornal O Globo.

Em primeiro lugar está um livro de Agatha Christie, que em Portugal já teve dois títulos: Convite para a Morte (Livros do Brasil) ou As Dez Figuras Negras (Asa). Em segundo lugar, Sentença em Pedra de Ruth Rendell (Gradiva). Em terceiro, O Talentoso Mr. Ripley de Patricia Highsmith (Europa América). Em quarto lugar, Shutter Island de Dennis Lehane (Gótica). E por fim, Um Estudo em Vermelho de Arthur Conan Doyle (ed 11x17).

O escritor brasileiro que aos 16 anos, por causa de um amigo que lhe pediu um argumento para cinema, começou a escrever Suicidas (ed. Saraiva), o seu primeiro romance publicado que foi finalista de vários prémios literários brasileiros - Prémio Benvirá de Literatura 2010, do Prémio Machado de Assis 2012 da Biblioteca Nacional e do Prémio São Paulo de Literatura 2013 e já vendido para o cinema – está sentado a conversar com o Ípsilon no hall de um hotel de Lisboa. Veio lançar Dias Perfeitos, editado pela Companhia das Letras, no Brasil, em 2014 (com uma tiragem maior do que costuma ser a de um livro de um jovem autor, dez mil exemplares) e que agora chega às livrarias portuguesas pela mesma chancela. Já tem os direitos de adaptação para cinema vendidos - será realizado por Daniel Filho.

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Top 5 dos livros policiais que Raphael Montes mais gostou.

É com entusiasmo que o escritor que deixou de lado a carreira de advogado conta que no Brasil morreu um grande coleccionador de literatura policial e a sua biblioteca ficou à venda. “Ele tinha a Colecção Vampiro — Os Mestres da Literatura Policial, com mais de 700 exemplares. E eu fiquei com essa colecção do número um aos seiscentos e oitenta e qualquer coisa porque o dono do sebo [alfarrabista] me ligou dizendo: ‘Raphael, a única pessoa que conheço capaz de querer toda a colecção Vampiro, de querer ter 700 livros em casa, é você!’ Então agora só me faltam alguns dos últimos exemplares que não procurei por cá porque me esqueci de trazer a lista. Já li 50, mas ainda me faltam ler muitos. O mais interessante na colecção Vampiro, não são os Agatha Christie ou Conan Doyle que eles publicam, porque esses tem no Brasil, mas os autores portugueses de policiais. E desses já li uns quatro”. 

Na conversa lembra o prémio para descobrir escritores de policiais portugueses que existia na época em que a colecção era publicada. Foi por causa de um prémio que Raphael Montes conseguiu ser publicado. Na verdade, aquele que é considerado “a nova estrela da literatura policial brasileira”, que está a assistir à publicação dos seus romances em outros países (em Inglaterra sairá na Penguin) e a ter conversas com tradutores sobre coisas demasiado brasileiras nos seus livros - como comer corações de galinha ou colocar jornais no chão para o cão fazer chichi em cima – começou a escrever contos policiais aos 12 anos. Isto porque uma tia-avó o incentivou a ler policiais e um avô lhe recortava notícias de jornais. “Suicidas não foi o meu primeiro livro, mas foi o primeiro que tentei publicar. É engraçado porque era um livro que todo o mundo dizia que nunca ia dar certo. Se chamava Suicidas, era um livro voltado para o público adulto escrito por um jovem - eu era adolescente - , com um tema muito pesado [jovens universitários que se matam num jogo de roleta russa] e com mais de 500 páginas. Mandei para várias editoras e o livro foi recusado pela maioria delas. Davam uma resposta padrão: agradecemos mas neste momento o catálogo está fechado por isso não podemos publicar. Ponto.”

Por isso concorreu a um prémio literário, o livro ficou entre os finalistas e chamou a atenção dos jurados que o publicaram por todos os motivos que lhe diziam que nunca seria publicado. “Decidiram publicar porque era um livro chamado Suicidas, com 500 páginas e escrito por alguém que tinha 18 anos. Pensaram: ‘Se hoje escreve isso o que não vai escrever aos 30 ou aos 40 anos?’ E o livro saiu, teve óptima repercussão, é o favorito de vários dos meus leitores. Dias Perfeitos teve uma aceitação maior ainda porque acredito que é um livro mais acessível. Foi o livro que mais estourou no Brasil, até por ser menos policial. Suicidas é mais um policial clássico, Dias Perfeitos é de suspense.”

Amor às avessas
Quando a mãe de Raphael leu Suicidas pediu ao filho que, a seguir, escrevesse uma história de amor porque estava um “pouco chocada” com aquela história de muitas mortes. Raphael achou interessante a ideia de pensar uma história de amor ao seu estilo. “Achei que criar uma história de amor obsessivo, com um personagem que não enxerga a violência em si mesmo – porque em algum momento ele se enxerga como violento -, seria interessante. O leitor acompanha objectivamente os factos violentos mas ao mesmo tempo tem a visão subjectiva da personagem que não se vê como violento.  O livro brinca o tempo inteiro com isso.”

A primeira ideia que teve para o seu livro foi escrever uma história de amor às avessas. De modo que um lado sentisse amor e o outro não. Dias Perfeitos conta a história de Téo, um estudante universitário de medicina, que tem especial predilecção por Gertrudes, o cadáver da sala de aula de anatomia. É a única pessoa de quem ele gosta no mundo até que conhece Clarice, estudante de história de arte que está a escrever um guião de um filme intitulado Dias Perfeitos, e fica obcecado por ela. Persegue-a e rapta-a andando com ela de um lado para o outro dentro de uma mala. Nada de muito original, há muitas histórias parecidas com esta, nada de estilisticamente complicado – a escrita é simples e por vezes até banal -, mas Raphael consegue que não se queira largar o livro até ao fim. Queremos saber como vai acabar aquela espiral de loucura e violência em que ele nos meteu.

Como o livro está escrito na terceira pessoa explora a visão de Téo, o psicopata. “O grande mistério do livro é esse. Você nunca sabe o que é que a Clarice está pensando. Você nunca tem acesso à mente dela, ao que ela está sentindo”. Quando escrevia o livro houve um momento em que sem querer dava a visão dela. Reescreveu essa parte porque acredita que o que incomoda Téo - ele nunca sabe o que Clarice está a sentir - incomoda os seus leitores também.

Dias Perfeitos sempre foi o título escolhido mas quando o livro ia sair no Brasil, autor e editor tiveram discussões sobre a capa. Raphael defendia que era preciso ter cuidado especial porque se tratava de um livro policial cujo título não era policial e tinham de escolher uma capa que caminhasse nesse sentido. Por isso, a capa brasileira traz um anão num jardim com um céu de nuvens cinzentas (ver em www.raphaelmontes.com.br e nos perfis do escritor no Facebook e Twitter).

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NUNO FERREIRA SANTOS

Isto porque no livro, Téo e Clarice, passam algum tempo no Chalé Soneca do Hotel Fazenda Lago dos Anões. “O surgimento dos anões acontece porque o livro brinca e flirta com várias histórias clássicas de amor. Ao longo do livro você tem A Bela e a Fera [A Bela e o Monstro, em Portugal], ele chama ela de Pequena Sereia, ele fala que ela está Branca como Neve e eles estão num chalé de anões. Tenho várias referências a esses clássicos Disney e o livro também passa por cenários de histórias de amor. A praia é a Praia do Nunca, inspirado na Terra do Nunca do Peter Pan, tem o encontro no motel mas tem também um encontro à beira do lago, um jantar romântico, a praia deserta como a de Lagoa Azul. Tem todos os momentos típicos de um relacionamento - o pedido de noivado, etc - , só que tudo destorcido pela mente do louco. Imagina colocar-se uma mulher numa mala e sequestrá-la? Por brincar com esse elemento de fábula, de surreal, é que achei que era interessante ter um anão na capa. Ao mesmo tempo que é um ser bizarro que causa um certo incómodo, é também fofo.”

Canibalismo gourmet
O próximo livro de Raphael Montes, Mesa para Dez, também tem um anão mas como personagem secundária. É a história de quatro amigos que dividem um apartamento em Copacabana, universitários que foram de uma cidade  pequena estudar para o Rio de Janeiro e precisam de dinheiro para pagar as contas. “Um deles faz gastronomia, o outro faz medicina, outro ciência da computação e um outro administração de empresas. O gastrónomo propõe aos outros três fazerem um de jantar para desconhecidos. E ponte entre pessoas que gostam de cozinhar e pessoas que querem ter uma experiência gastronómica diferente é feita através de um site. Decidem cobrar 300 reais por pessoa, dez pessoas são 3 mil reais, gastam 500 reais com ingredientes e ficam com o resto. Na hora de colocar no site, o rapaz da ciência da computação, um brincalhão obeso mórbido que passa o tempo no computador, em vez de colocar carne de cordeiro ao molho de vodka a maçãs verdes cobrando 300 reais, coloca jantar de carne humana ao molho de vodka e maçãs verdes a 3 mil reais por pessoa. Quando entra no site meia hora depois dez pessoas já pagaram pelo jantar de carne humana porque adoraram a ideia. Eles ganharam 30 mil reais em menos de meia hora e não sabem como vão fazer o jantar...  É uma espécie de Breaking Bad. O mote do livro é esse: pessoas que começam a praticar um negócio ilegal, ficam muito ricas mas de início nem pensavam que o fariam. É sobre canibalismo gourmet.”

Raphael encontrou muitas informações, algum material sobre índios brasileiros que eram canibais, que o sabor da carne humana lembra a carne de porco. Aproveita também para investigar porque comemos a carne que comemos. Não é um romance a defender o vegetarianismo, mas reflecte sobre o quanto comer é algo mais social do que necessário ao corpo humano. “O que nos dá o direito de comermos carne? Você encontra vários argumentos, porque somos superiores na cadeia de poder, por exemplo. Mas se pensarmos assim talvez para alguém rico, comer alguém pobre faça sentido, porque o faz pensar que está acima da cadeia ou não?”. Esta é uma das muitas questões desse romance em que trabalha.

Raphael insere a sua obra naquilo a que chama “romance policial pop”: por ser contemporâneo, cinematográfico, com algo de visual e gráfico em cada livro. Diz que evita fazer livros que tenham semelhanças entre si. De maneira a que um leitor possa gostar de um e não gostar do próximo. Por isso, não tem até agora um personagem fixo que acompanha todos os seus livros.

Mas o que sentiu ao publicar fora do Brasil, é que existe uma espécie de demanda para que um autor tenha um personagem fixo. Pensou então quem poderia ser esse personagem, vai ser um padre. Mas este é um projecto futuro. Este ano já escreveu três longas-metragens e está a trabalhar com o escritor Marçal Aquino numa série para a TV Globo. Como é bastante metódico no seu método criativo, faz uma espécie de esqueleto da história, de tudo o que acontece nos livros antes de começar a escrever, já tem pensados os esqueletos das histórias dos três livros que pretende escrever com o padre. Daí ser uma série. Mas pela qual vamos ainda ter de esperar.

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