Biógrafos brasileiros já não precisam da autorização dos biografados

O Supremo Tribunal Federal brasileiro deu razão aos editores e considerou inconstitucional a interpretação da lei que fazia depender a publicação de uma biografia da autorização prévia do biografado

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Roberto Carlos fez com que fosse retirada das livrarias a biografia Roberto Carlos em Detalhes REUTERS/Jorge Adorno

O editorial da Folha de S. Paulo desta sexta-feira diz que há “bons motivos” para se classificar como “histórica” a do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro que veio considerar inconstitucional a lei que impunha aos autores de biografias um pedido de autorização prévia aos biografados (ou aos seus descendentes, caso a pessoa retratada já não vivesse).

A decisão, tomada por unanimidade no dia 10 de Junho, “representa uma vitória da liberdade de expressão”, diz o editorial da Folha, que acha vergonhoso que, “26 anos depois de promulgada a Constituição, ainda se discuta juridicamente a validade de um de seus princípios básicos”.

A decisão do STF não impede que um biógrafo venha a ser processado pelo que escreveu, mas desobriga-o de requerer a autorização do retratado, o que implicava, entendeu o tribunal, uma censura prévia inaceitável em democracia.

Vários autores de biografias célebres, como o jornalista Fernando Morais, autor de Olga, Chatô e O Mago (sobre o escritor Paulo Coelho), ou Lira Neto, autor de uma recente e muito conceituada biografia de Getúlio Vargas, vieram já aplaudir esta decisão judicial. Morais não faz a coisa por menos e diz que se trata de “uma vitória da luz contra a treva, da civilização contra a barbárie”.

Mais contido, Lira Neto observa que continua a “não valer tudo” e que “os mesmos critérios éticos e rigor de apuração continuam obrigatórios no trabalho de um biógrafo que se preze”, mas elogia o STF por ter abolido a “censura prévia”, numa decisão que considera “histórica e antiobscurantista”.

A legislação brasileira nunca obrigou expressamente os biógrafos ou as respectivas editoras a solicitar previamente a autorização dos biografados, mas era o que vinha sucedendo na prática desde que os tribunais deram razão ao cantor Roberto Carlos, que conseguiu ver recolhida a obra Roberto Carlos em Detalhes (2006), de Paulo Cesar de Araújo, com base em dois artigos do Código Civil relativos à protecção da privacidade e da honra. O livro contava que o cantor usa uma perna mecânica, e terá sido para impedir que essa informação se tornasse pública que Roberto Carlos recorreu aos tribunais.

A Associação Nacional de Editores de Livros (ANEL) protestou contra esta interpretação dos referidos artigos do Código Civil, e levou ao STF uma Acção Direta de Inconstitucionalidade, pedindo ao tribunal que afastasse expressamente a necessidade de autorização prévia dos biografados. Inicialmente, a associação pretendia ainda que os biografados não pudessem processar os biógrafos a posteriori, reivindacção depois abandonada, já que ficou claro que o STF não aceitaria pôr em causa os direitos, também eles constitucionais, à privacidade e ao bom nome.

Mas é esta versão inicial da petição da ANEL que permite que os principais derrotados por esta decisão, como Roberto Carlos, venham agora elogiar a decisão do STF, alegando que só eram contra a tentativa de impossibilitar os biografados de se defenderem contra eventuais calúnias dos biógrafos.

Em oposição à campanha da ANEL, um grupo liderado por Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso, e que integrava vários pesos-pesados da música popular brasileira – o  próprio Caetano, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento ou Djavan, entre outros – veio defender publicamente a necessidade de autorização prévia para as biografias.

O movimento, intitulado Procure Saber, foi duramente criticado e acabou por recuar, sendo poucos os seus membros que, mesmo após esta decisão do STF, assumiram continuar a defender a exigência de autorização prévia, como fez o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. "Eu não era a favor da aprovação, mas a maioria quis, e eu aceito", afirmou o cantor, assumindo que votara vencido quando o grupo mudou de posição.

Embora a decisão do STF não actue retroactivamente sobre casos já julgados em definitivo, Paulo Cesar de Araújo já anunciou que irá publicar uma edição actualizada da sua biografia vetada de Roberto Carlos, que deverá incorporar o próprio processo juducial que o cantor lhe moveu. Lembrando que Roberto Carlos “sempre foi apolítico” e nunca quis comprometer-se com causas públicas, o jornalista argumenta: “Aos 70 anos, quis abraçar a censura prévia e foi derrotado, e esse facto tem que ser narrado”.

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