A música de Ornette Coleman só obedecia à liberdade

Desapareceu aos 85 o músico que protagonizou a libertação completa do jazz de quaisquer regras. O saxofonista Ornette Coleman foi um revolucionário e um visionário – a morte teve a pouca originalidade de o levar.

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Ornatte Coleman num concerto na Gulbenkian em Lisboa, em Agosto de 2007 Nuno Ferreira Santos

Não há muitos que se possam gabar de semelhante coisa na cultura popular: um antes e um depois da sua chegada. Ornette Coleman é um desses raros músicos cujo entendimento do que poderia ser a música nunca se acomodou à História que o precedera.

Com Coleman, o jazz passou a justificar o epíteto de free, dispensando a estrutura harmónica sobre a qual se construía. Com Ornette, cada tema era um lugar de risco, de investigação de possibilidades, um salto para o desconhecido em que os músicos se colocavam nos humores do momento. Dificilmente poderia conceber-se uma dimensão mais aventureira: os instrumentos juntavam-se e inventavam o caminho à medida que avançavam. Não há morte, aos 85 anos – “paragem cardíaca” após semanas de internamento, noticiou o New York Times –, que apague isto. Ornette Coleman mudou para sempre a própria significação do jazz, pôs críticos e público em desacordo (por vezes violento) sobre se aquilo que fazia era uma traição ou a maior das homenagens ao espírito dessa música, se merecia ser integrado numa tradição ou ser tratado como um alienado.

A consciência da originalidade da sua proposta musical, encabeçada pelo som do saxofone alto que interpretava, ficava patente na seminal gravação de 1959 que intitularia The Shape of Jazz to Come. “O álbum estilhaçava os conceitos tradicionais de harmonia no jazz, livrando-se não apenas do pianista mas de toda a lógica de progressões de acordes claramente delineadas”, escreveu o crítico Steve Huey no All Music Guide. Capitaneando uma formação que incluía ainda os imensos talentos de Don Cherry, Charlie Haden e Billy Higgins, Coleman assinou uma autêntica revolução no jazz aos 29 anos. Pouco depois de se dar a conhecer na cena de Los Angeles, o músico texano era já detentor de uma sólida linguagem que rompia sem reverência com o be bop que então imperava, extremando as lições que Charlie Parker deixara no ar.

Em 2006, em entrevista ao site Democracry Now!, o contrabaixista Charlie Haden recordou o momento em que percebeu não poder deixar escapar a sua hipótese de juntar-se a alguém que abanaria o mundo musical. Ao dar um pulo ao clube The Haig, em Hollywood, para assistir à banda de Gerry Mulligan, viu subir ao palco um tipo que se fazia acompanhar de um saxofone alto branco e de plástico. Os poucos segundos em que pôde exibir a sua abordagem quase alienígena ao jazz foram suficientes para lhe ser pedido que se calasse, mas também para que Haden percebesse estar diante de um génio. Apresentados por um amigo comum, seguiram de imediato para casa de Ornette. “Tocámos durante três dias”, lembrou Haden. A revolução estava em marcha e deixava de soar a um delírio solitário.

Bastaria depois um par de anos para Ornette Coleman deixar uma marca de que o jazz jamais recuperaria: a The Shape of Jazz to Come juntar-se-iam Tomorrow Is the Question!, Free Jazz, Change of the Century, Ornette e This Is Our Music.  Quando terminou o ano de 1961, a estocada estava dada. Mas talvez esteja em Free Jazz, registado em 1960, o efeito mais estrondoso da sua discografia inicial. Ao gravar com dois quartetos distintos, Coleman aproveitava o advento do estéreo distribuindo cada uma das formações por um dos canais, dinamitando em absoluto tudo o que poderia haver de regrado e previsível na exploração da improvisação.

Pegar e tocar

Desde o início, na verdade, a abordagem de Ornette Coleman seguiu sempre a sua atracção inicial pelo instrumento – depois de juntar dinheiro a engraxar sapatos para poder comprar o primeiro saxofone, diz o seu site oficial, um dia a mãe disse-lhe para espreitar para debaixo da cama e lá encontrou não apenas o instrumento mas também o rumo para a sua vida. Com toda a simplicidade, desatou a tocar, dispensando quaisquer ensinamentos. Essa confiança cega na intuição explicaria, talvez, o porquê de nunca se ter preocupado em obedecer a regras ou seguir figurinos que outros tinham construído. De cada vez, era esse o gesto que Ornette repetia: pegava no saxofone e desatava a tocar.

Foi também isso que fez nas suas visitas a Portugal, a primeira das quais na histórica edição inaugural do Cascais Jazz, em 1971, liderando o quarteto de que fazia também parte Charlie Haden – que, famosamente, dedicou o tema Song for Che aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné, e levou o contrabaixista a ser detido pela polícia política PIDE. Coleman voltaria para duas actuações no Jazz em Agosto (em 2007 e em 1988 com a Prime Time Band, inspirada na sua experiência anterior com os Masters Musicians of Jojouka), e na Aula Magna (Lisboa) e Casa da Música (Porto), em 2008, apresentando o álbum Sound Grammar.

Até ao fim, a sua postura foi sempre a mesma: Ornette tratava a música como um mistério e não como uma certeza diante da qual soubesse antecipadamente como se colocar.

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