Retomando o debate sobre a Magna Carta

Churchill argumenta que a importância da Carta reside na afirmação geral do princípio de que existe uma lei à qual a própria Coroa está sujeita

Devemos olhar a Magna Carta de 1215 como um documento feudal que basicamente consagra privilégios da nobreza, ou como um primeiro marco na limitação do poder político de onde emerge a liberdade moderna? Este foi o centro do debate ocorrido na quinta-feira passada, num jantar na residência da embaixadora britânica, Kirsty Hayes, para assinalar os 800 anos da famosa Carta.

Coube-me moderar o debate entre dois interlocutores que não precisavam de grande moderação: Gonçalo Almeida Ribeiro e André Azevedo Alves. Ambos professores na Universidade Católica (o primeiro na Faculdade de Direito, o segundo no Instituto de Estudos Políticos), ambos estudaram em países de língua inglesa (Harvard, no caso de Gonçalo, LSE, no caso de André). E ambos tinham participado num debate promovido nos primeiros dias de Janeiro nas páginas do diário digital Observador — um debate que foi de certa forma retomado nas páginas do PÚBLICO por Paulo Rangel e por mim próprio.

O ponto de partida tinha sido um artigo de Miguel Morgado (também do IEP-UCP, além de assessor do Primeiro-Ministro) logo no dia 1 de Janeiro. Recordando que 2015 era o ano do oitavo centenário da Magna Carta, Miguel Morgado argumentara que o documento expressava a ideia crucial de limitação do poder pela lei. E acrescentara que a referência fundadora à Magna Carta explicava em boa parte a natureza moderada das modernas revoluções inglesa (1688) e americana (1776) — por contraste com o radicalismo da revolução francesa (1789), que ocorrera em ruptura com o passado.

Gonçalo Almeida Ribeiro escreveu poucos dias depois no mesmo Observador uma crítica amigável ao argumento de Miguel Morgado. Disse ele que a Magna Carta tinha sido basicamente expressão dos privilégios da nobreza numa sociedade de ordens feudal, marcada pela desigualdade perante a lei. Embora a Carta tivesse sido usada no mundo de língua inglesa como mito fundador da liberdade moderna, a verdade é que a liberdade moderna era definida pela igual liberdade de todos os cidadãos perante a lei. Neste sentido, o absolutismo real — contra o qual se opuseram os defensores da Magna Carta no início da era moderna — tinha sido um progresso no sentido da igualdade perante a lei. Esta foi a posição que Gonçalo Almeida Ribeiro voltou a defender no jantar-debate de quinta-feira passada.

André Azevedo Alves também retomou nesse jantar-debate o argumento que apresentara no Observador. Disse ele que os dois pontos de vista (de Miguel Morgado e Gonçalo Ribeiro) não eram necessariamente incompatíveis: a Magna Carta pode ter sido um documento basicamente feudal e inigualitário e, simultaneamente, pode ter constituído uma referência fundamental para a liberdade moderna. Essa referência resulta da ideia fulcral de limitação do poder central — não só através da lei, mas também através de instituições intermédias descentralizadas que actuam como freios e contrapesos ao poder central. Por esse motivo, argumentou André Alves, a Magna Carta foi sobretudo importante porque alimentou entre os povos de língua inglesa um “preconceito” contra a centralização do poder. É este “preconceito” que ajuda a explicar o actual cepticismo popular britânico (à direita, mas também à esquerda) contra o projecto de uma União Europeia supranacional.

É talvez útil recordar que Winston Churchill, na sua Uma História dos Povos de Língua Inglesa (1956), deu bastante relevo à Magna Carta. E é possível encontrar passagens em que o autor parece dar razão a cada um dos argumentos em confronto no jantar-debate.

Por um lado, Churchill afirma que “quem quer que tenha ouvido falar da Magna Carta desde a infância, e vá lê-la pela primeira vez, pode ficar estranhamente desapontado; e pode ser levado a concordar com o historiador que propôs traduzir o seu título não por ‘Grande Carta das Liberdades´, mas por ‘A Longa Lista dos Privilégios’ — privilégios da nobreza à custa do Estado.”

Nesta passagem, Churchill parece concordar com o argumento de Gonçalo Almeida Ribeiro (e de Paulo Rangel). Todavia, Churchill argumenta em seguida que “a importância da Carta não reside nos detalhes, mas na afirmação geral do princípio de que existe uma lei à qual a própria Coroa está sujeita. Rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et lege — o rei não deve estar abaixo dos homens, mas abaixo de Deus e da lei.”

Aqui, Churchill parece concordar com o argumento de André Alves (e de Miguel Morgado). Em qualquer caso, o debate será retomado na próxima edição (56) da revista Nova Cidadania e no Estoril Political Forum, de 22 a 24 de Junho, dedicado precisamente aos 800 anos da Magna Carta.

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