O nascimento imperfeito de uma mãe

Sofia Anjos é cronista do PÚBLICO online desde 2013. Por causa da rubrica Mães Há Muitas, que assina quinzenalmente no site PÚBLICO Life&Style, a directora de contas numa agência de comunicação tem agora dois filhos: a Laura e o livro Difícil é Parir a Mãe (Clube do Autor). Perguntámos-lhe o que mudou na sua vida. Eis a sua resposta.

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Nos últimos dois anos tive uma filha e escrevi um livro. Escusado será dizer que, aos amigos, pouco os vi. Ser mãe foi planeado. Publicar um livro foi um acaso. Quase me senti mãe de gémeos falsos, claro. Como se vivesse numa época em que só descobrimos o milagre da vida, a duplicar, na sala de partos. Pois a escrita foi algo que pari, distraidamente, no dia em que a minha filha nasceu.

Foi a 8 de maio de 2013, dia a que cheguei sem qualquer curso de preparação pré-parto e muito menos de escrita. Ambos os meus filhos nasceram e encontram-se bem. A Laura está no auge dos seus teimosos dois anos e o livro — chamo-lhe “livrinho” por ser mais pequenino — engordou até às 288 páginas.

Mas ontem o telefone tocou e uma voz forte quis saber: “Agora que publicaste um livro, o que  é que mudou na tua vida?” E eu, sem me conter: “Nada.” Resposta que ficou perdida entre a afirmação e a interrogação, já que me desviei a pensar por que terão as pessoas esta tendência a perguntar mais, gostar mais, reparar mais nos filhos caçulas? Quando são os mais velhos, primogénitos, que nos viram a vida do avesso. A Laura é que mudou tudo. E o tudo, no meu mundo, sou eu.

Eu não sou escritora. Eu não sou jornalista. Nem tenho sequer um blogue, como aqui há dias ouvi comentar: “Sabe que a Sofia é blogger?” Bem, o mais próximo que tive de um blogue foi um diário que escrevi em miúda; e no mês passado um cliente ofereceu-me produtos da sua marca, sem que eu tenha de a mencionar, pois não sou um suporte publicitário. E ainda sobre não ser: não sou mãe a tempo inteiro, oficialmente. Daquelas mães que escolhem ficar em casa a criar os filhos e que, admito, do alto dos meus 40 anos, já estive mais longe de invejar. Também não pertenço a qualquer clube de mamãs, não navego por páginas de roupinhas para crianças com frou-frous, não partilho dicas de como fazer assim e assado com os filhos alheios. E é com alguma pena que nunca serei mãe de uma família numerosa. As minhas credenciais maternais resumem-se a uma filha, um instinto e a olhar por ambos dia e noite. Um currículo banal, igual ao de tantas mães.

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— Então, Sofia, quer escrever uma coluna sobre maternidade?

— Quero. Mas não tenho experiência no assunto, têm a certeza?

“Ser mãe é a tropa das mulheres” foi a primeira crónica publicada em Agosto de 2013 no Público Online, Life&Style: 69.269 leitores que, garanto, não são o número de amigos que tenho no Facebook. Palavras que me saíram das entranhas, curiosamente, após completar três meses como mãe, em jeito de final de recruta. Com este texto, nasceu a coluna Mães Há Muitas, onde, semanalmente, escrevinho sob o ponto de vista da mãe que sou, acerca daquilo que vejo, leio e sinto sobre a maternidade.

A minha editora adora os textos mas o marido dela detesta, confessou-me. E a redacção do jornal igualmente dividida. Os leitores, muitos, dizem-me: “O que me ri!” ou “Você não devia ter útero”. Mas tenho sim, útero, e também me cresceram tomates desde que fui mãe. São coisas íntimas da metamorfose maternal: leite a sair das mamas, pés que crescem um tamanho, coração que engorda.

Assim que comecei a escrever, espantei-me. Desconhecia o quanto as pessoas comentam as coisas que os jornalistas, cronistas, especialistas escrevem. Depois ofendi-me um bocadinho com a liberdade de expressão, bem, com a utilização de calão, por parte de perfeitos desconhecidos para comigo. Mas agora, hoje mesmo, leio os comentários às crónicas com gosto e, sim, divirto-me. Há quem se identifique e quem, não se revendo, também se divirta durante dois minutos. Isso é bom. E também não ignoro os malcriados, embora pudesse, aqui, fingir que sim: “Alguém dê um Prozac a esta senhora”, “Coitada, esperou até aos 38 anos para ter filhos”, “Só pode ser uma frustrada, ressabiada, mal-amada”. Já isto, não é bom, nem bonito mas é gratuito.

Mas a cereja em cima do bolo foi para a Marinela, uma senhora que a propósito da crónica “As mães não se medem às mamadas” afirmava: “Era tirar-lhes os filhos!” — referindo-se às mulheres que optam por não amamentar. Foi apupada virtualmente e, logo depois, prontamente se rectificou e enterrou: “Falei de irresponsabilidade na opção de engravidarem! Já é razão mais que basta para ver os filhos retirados às mães. Até pelo tempo que elas não têm por via dum qualquer emprego onde o tempo de permanência é manifestamente insuficiente para a criança.” Bem, sempre que fico a trabalhar até mais tarde, regresso pela A5 com o pé no acelerador com medo de chegar a casa e ver a Marinela com a minha filha ao colo pronta para ma levar. Porque a Marinela é o pesadelo de todas as mães. 

Ironicamente, o sucesso das crónicas resulta, em parte, destes comentários que me chegam há dois anos e que revelam mentalidades para as quais ainda é crime não querer ser mãe, ou sê-lo e optar por não amamentar, deixar o bebé chorar, queixar-se de cansaço, chegar tarde a casa. “Então, que não fosse mãe!” — é a frase mais repetida. Será representativo da mentalidade nacional?

Do quão bom é ser mãe, como cuidar de um bebé, que desafios ultrapassar é algo que está falado e escrito, seriamente, em anos e anos de testemunhos e literatura. O desafio das crónicas passa por expor a vivência diária, a rotina, as peripécias e queixumes maternais com algum humor. Assuntos com que se brinca pouco, pois as pessoas estão muito comprometidas com uma imagem imaculada. Mãe é santa, boazinha, terna, voluntariosa, a melhor pessoa do mundo de cada pessoa. Mãe confessa-se ao padre e ninguém, verdade seja dita, quer saber dos seus pecados.

— Oh! Mais uma a dizer que a maternidade é uma chatice!

Não está na moda afirmar que ser mãe é difícil. Não é moderno olhar para a maternidade como um fardo. Não apareceram, nos meios de comunicação, centenas de mães a queixarem-se da vida. E sim, há meia dúzia de sites, blogues ou artigos, em Portugal, que focam este ângulo mais cinzento. Mas são ainda muito poucos quando comparados com os restantes que perfazem uma enorme mancha cor-de-rosa e que se levam demasiado a sério. Falta humor, leveza, descontracção na maternidade. Difícil É Parir a Mãe é um livro que reúne muitos dos textos que fui partilhando e que o Clube do Autor me desafiou a publicar. O título é para mim a afirmação do nascimento imperfeito de qualquer mãe.

Escolhi partilhar a minha experiência que, a brincar a brincar, também é séria. Disse-me uma tia psicanalista (sim, uma tia é um parente mas ainda confio na palavra da família): “Querida, os teus textos são muito úteis para debater lá nos cursos com os formandos.” E eu a pensar que sou virgem no que respeita a deitar-me no divã, Tizinha. Então fui escrevendo assim, sem consulta nem nada. Às tantas da noite, quando sobram horas para escrever, lá me vou lembrando dos formandos: estudantes e jovens psicólogos, enfermeiros, técnicos de terapia familiar. E chego a pensar: se estes textos me levam as lágrimas e me perduram as alegrias, talvez suceda o mesmo com mais duas ou duzentas mães, ambos são números bonitos.

O que o livro mudou? Diria que me impede de mudar esta parte da minha história.

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