Austeridade sem raiva

Cristas tem razão: temos medo porque somos impotentes e há exageros do fisco.

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

1. Assunção Cristas disse uma frase com a qual milhões de portugueses da classe média, incluindo eu própria, se identificam imediatamente. Disse ela que “cada carta que chega do fisco, a pessoa até tem medo”. É a mais pura das verdades. O problema é que Cristas é ministra do Governo que aplicou a maior subida de impostos de que há memória e a maior da zona euro desde o início da crise, deixando a classe média, que verdadeiramente sustenta o Orçamento, espremida até à última gota. A ministra não disse o que disse por acaso. Tem dirigido a pasta da Agricultura de modo suficientemente eficaz para evitar grande contestação. Vale mil vezes mais do que Nuno Melo para suceder a Paulo Portas. Mas não se imagina que um membro de um governo britânico ou francês se atrevesse a dizer o que ela disse, sem sofrer consequências políticas. O fisco trata os contribuintes de uma forma absolutamente autoritária e cega, com o único objectivo de arrecadar dinheiro. A regra é só uma: “paga primeiro e protesta depois”. Cristas tem razão: temos medo porque somos impotentes e porque há erros e exageros do fisco que podem destruir as nossas vidas. A ministra estará, porventura, a ocupar o lugar que Portas foi forçado a abandonar, graças à demissão “irrevogável” que o deixou nas mãos de Passos, agora com uma dependência reforçada pelo facto de ter querido evitar a todo o custo que o CDS/PP fosse a votos nas próximas eleições.

2. Vem isto a propósito da apresentação das grandes linhas do programa eleitoral da coligação e das Nove Garantias que Portas quis apresentar de forma personalizada. São quase todas gerais ao ponto de qualquer partido as poder assinar. A não ser duas ou três, a começar pela primeira: nunca mais haverá uma intervenção externa no nosso país nem o défice será excessivo. Mandou-lhe a prudência que referisse um qualquer problema internacional inesperado. Olhando à volta, o que não falta são problemas internacionais inesperados e esperados. No seu afã de justificar a promessa, o líder do CDS teve de recorrer a uma “inverdade”: as anteriores intervenções do FMI em Portugal foram sempre culpa de governos socialistas. A segunda, em 1983, aconteceu na sequência de um governo da AD que deixou as finanças públicas e a dívida externa atingir proporções impensáveis. Também nessa altura havia razões internas e externas. A economia ainda sofria as consequências desastrosas do PREC e o segundo choque petrolífero (1979) estava a ter efeitos devastadores nas economias europeias. Coube a Mário Soares fazer o trabalho penoso de recuperar o país. Na primeira (1977), também foi o primeiro Governo Constitucional liderado por ele que teve de chamar o FMI. A economia portuguesa tinha sido destruída pelas nacionalizações e pelos desmandos do PREC. Só vale a pena recordar o que se passou para não passarmos todos por estúpidos. As garantias de Portas não são garantias nenhumas e, tal como a sua reforma do Estado, vão ser rapidamente esquecidas.

3. Antes dele, coube a Matos Correia apresentar um pouco a despachar meia dúzia de medidas vagas. Passos Coelho não se preocupou com nada disto. A sua mensagem é muito mais simples e eficaz: querem pôr em causa os sacrifícios, agora que nos livramos da troika e deitar tudo a perder? Invoca-se os anos de Sócrates para apagar os anos da troika.

Muita gente que sabe do que fala interpreta esta cerimónia sem chama nem entusiasmo, antecipada (tal como o anúncio da coligação) para tentar marcar a agenda política apropriada pelo PS, como a verdadeira estratégia eleitoral de Passos. Dizer o menos possível para deixar que o combate eleitoral se trave entre “segurança” e “aventura”, explorando o medo dos portugueses, tradicionalmente acomodatícios e bastante avessos ao risco. É uma estratégia intencional que, aliás, impede Paulo Portas de grandes floreados para acentuar a sua diferença. A Economist descrevia o ambiente que se vive em Portugal numa peça com um título revelador: “Austeridade sem Raiva”. “Talvez surpreendentemente, os partidos anti-austeridade e populistas não estão a ter grande sucesso”, diz a revista, constatando que o Governo que aplicou o programa da troika regista melhores resultados do que se esperaria. É verdade. Mas a cerimónia foi demasiado tristonha para excluir a ideia de que há ali também um grande desgaste.

O resultado desta campanha eleitoral será também o fruto de vários “acidentes de percurso” que podem ou não beneficiar a coligação. Passos deve estar a pedir a todos os santinhos que a Grécia se desmorone para acusar o PS de querer cometer os mesmos erros do Syriza com as mesmas consequências. Comparar o PS ao Syriza passou a ser, aliás, um exercício obrigatório da campanha. Mas é preciso, às vezes, ter um certo cuidado com o que se deseja: um Grexit terá fortes repercussões na Europa e Portugal estará sempre na linha da frente de qualquer nova crise. É ver como as taxas de juro a mais longo prazo reagem a cada reunião entre Atenas e Bruxelas que acaba mal.

4. A tarefa de António Costa não é mais fácil. Ontem, reuniu no Coliseu a Convenção que devia aprovar o programa eleitoral socialista. Até agora, o líder socialista tem cumprido rigorosamente aquilo que anunciou. Os seus inimigos concedem que elevou o debate para um novo patamar e tomou conta da agenda política. Foi o caminho que escolheu para dar credibilidade ao seu programa. Não pode desviar-se um milímetro, se quer provar que há formas diferentes de melhorar o funcionamento dos partidos e de preparar programas políticos que não sejam para meter na gaveta. Há precedentes no PS, com os Estados Gerais de Guterres e até com as Novas Fronteiras de Sócrates. A diferença está no contexto de crise geral em que vivemos. Pode resultar ou pode não resultar. Não pode é mudar de rumo ao sabor das sondagens.

Hoje já não é possível fugir ao que se passa no mundo, para já não dizer na Europa, da qual vai depender em grande medida o nosso destino. Ontem, na Convenção, António Vitorino resumiu o desafio europeu a uma frase: a Europa tem de deixar de ser constituída por eternos ganhadores e eternos perdedores, como foi nos últimos tempos. Sob pena de perecer. Elisa Ferreira advertiu que “a continuidade desta agenda europeia [decidida em Berlim] será o fim da moeda única.” Mas há outras questões que é preciso debater, mesmo que não dê jeito a ninguém. Refiro duas. O TTIP é uma oportunidade para que o país, depois de ter falhado a primeira vaga da globalização, tentar não perder a segunda. Como escrevia Ferreira Leite no Expresso, a nossa situação geográfica permite-nos tirar proveito da grande auto-estrada atlântica que liga a Europa ao resto do mundo. A economia azul não pode continuar a ser um slogan. Exige estratégia, exige investigação científica, exige parcerias adequadas. A segunda diz respeito às privatizações e às mudanças de propriedade de empresas que são, muitas vezes, de natureza estratégica. O nível que atingiu o investimento chinês (para não falar do angolano) não pode ficar sem discussão. Não apenas pela escala mas porque obedece a uma estratégia de Pequim para aproveitar a crise e ocupar sectores fundamentais nas economias mais vulneráveis, que lhes abram as portas para a Europa. O seu investimento em Portugal é ou de empresas estatais ou de empresas privadas com muito dinheiro e pouco historial. Não devemos cair num discurso proteccionista e fechado. Mas devemos olhar com atenção para as consequências geopolíticas das decisões que tomamos e para a qualidade do investimento de que precisamos. Sem outra estratégia, corremos o risco de ter um destino triste: sermos empregados de multinacionais chinesas ou angolanas ou sermos a mão-de-obra qualificada de que precisam os países mais desenvolvidos. Como diz um amigo meu, poderá haver um futuro para uma parte dos portugueses, mas não haverá futuro para Portugal. 

Sugerir correcção
Ler 10 comentários