Daniel Berehulak contou o que mais ninguém quis contar

Ao serviço do New York Times, o fotojornalista esteve no epicentro da epidemia de ébola na África Ocidental. O trabalho valeu-lhe o Pulitzer de 2015 para Reportagem Fotográfica.

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Daniel Berehulak/Reportage by Getty Images

Sentámo-nos à conversa num bar de tapas no Born, bairro hipster de Barcelona. Daniel Berehulak acabava de chegar do Nepal, onde estava há quase um mês a registar a devastação provocada pelos sismos de Abril e Maio. Mais uma missão para o The New York Times, jornal com o qual tem colaborado quase em exclusivo desde que se tornou freelance em 2013. “Estar aqui em Barcelona é como voltar ao paraíso. No Ocidente, não damos conta do quanto somos privilegiados”, desabafa. O fotojornalista australiano vive entre Nova Deli, na Índia, e a capital da Catalunha, e dias depois da entrevista receberia em Denver, nos EUA, o Scripps Howard e, em Nova Iorque, a 28 de Maio, o Pulitzer — prémios atribuídos à crème de la crème do jornalismo e da fotografia.

“Isto de ganhar o Pulitzer é, aparentemente, uma grande coisa. A sério! Sobretudo para mim que cresci numa quinta onde ajudava o meu pai a plantar árvores e a apanhar bosta de vaca todos os dias”, diz, em tom jocoso. Filho de um casal ucraniano que emigrou para a Austrália no pós-Segunda Guerra Mundial e se instalou numa propriedade rural nos arredores de Sydney, aprendeu “desde tenra idade com o trabalho no campo que para se conseguir alguma coisa na vida é necessário lutar muito”. “A fotografia foi sempre um hobby. Mas a minha família nunca encarou essa minha paixão como uma possibilidade de emprego. E eu tinha zero talento. Tirei milhares de fotografias péssimas. Tive de trabalhar arduamente e ser muito determinado. Fiz uma caminhada em que não reconheço erros, só crescimento e aprendizagem. Acredito que podemos conseguir qualquer coisa na vida se trabalharmos mais e melhor do que todos os outros.”

Veterano na cobertura de conflitos armados e crises humanitárias, Berehulak, 39 anos, é, nas suas palavras, “um fotógrafo que conta histórias, um fotógrafo de pessoas”. “A fotografia é a minha vida e é também uma paixão. Não aponto a câmara às pessoas a torto e a direito. Tento estabelecer uma relação com as pessoas, sorrir, mostrar-lhes quem eu sou. A partir do momento em que se cria essa empatia, a câmara está ali presente e só é utilizada quando alguma coisa acontece, quando realmente é preciso.”

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"Tirei milhares de fotografias péssimas. Tive de trabalhar arduamente e ser muito determinado. Fiz uma caminhada em que não reconheço erros, só crescimento e aprendizagem" Shaul Schwarz/Getty Images Reportage

Fascinado pelas missões em locais “onde a percepção que se tem dos fotojornalistas não está manchada pelos tablóides e paparazzi”, não hesitou quando o chamaram para fazer reportagens sobre o surto de ébola que, desde Dezembro de 2013, dizimava vários países da costa ocidental africana. “Estava a seguir o que se passava há alguns meses e questionava-me sobre a possibilidade de a epidemia se propagar e afectar outras partes do mundo. Ia a caminho do Curdistão quando o editor de fotografia internacional do The New York Times, com quem tenho uma excelente relação, me perguntou se eu queria fazer esse trabalho. Imediatamente disse que sim.”

O jornal norte-americano enviou, no segundo semestre de 2014, diferentes equipas de redactores e videojornalistas para a Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri — um esforço colectivo igualmente recompensado com um Pulitzer na categoria de Reportagem Internacional. À excepção dos jornalistas locais, alguns também contratados ocasionalmente pelo Times, Berehulak foi, entre todos os colegas, o repórter que mais tempo esteve no epicentro da epidemia — um total de quatro meses, incluindo uma primeira missão na Libéria em que trabalhou sem folgas durante 67 dias e uma outra viagem à Guiné-Conacri onde descobriu a família do paciente zero. As suas fotos acompanharam notícias e reportagens escritas por cerca de 15 editores e redactores, mas no terreno trabalhou somente com dois ou três. Um deles foi Norimitsu Onishi, actualmente chefe da delegação do NYT em Joanesburgo. “Foi fantástico trabalhar com o Nori, demo-nos muito bem e durante sete semanas perseguimos juntos vários ângulos diferentes.” Foi com esta dupla, um ocupando-se da escrita, outro da fotografia, que o NYT conseguiu mostrar o que realmente se passava na Libéria. “Depois de semanas a fotografar nas ruas, cheguei a um ponto em que já tinha tantas imagens de corpos e de pessoas doentes jogadas pelo chão que senti que não estava a acrescentar nada de novo ou importante à história. Esse é um dos problemas que se enfrentam ao cobrir situações de crise: via morte por todo o lado, estava física e emocionalmente exausto e não conseguia pensar num ângulo diferente. Trabalhar em equipa com pessoas que trazem novas ideias ajudou-me a reinventar o meu trabalho e a focar as minhas energias da melhor forma.”

Durante quase dois meses, os dois jornalistas seguiram a comunidade de Capitol Hill, na região suburbana de Monróvia, e várias das famílias que ali viviam. As peças do puzzle começaram a encaixar-se. “Começámos a acompanhar uma família, os Doryen. Através deles, conseguimos compreender como a epidemia afectava toda a sociedade. E tudo o que eu fazia antes, ao fotografar nas ruas diariamente, ganhou um novo significado.” As famílias numerosas são o pilar das sociedades africanas, sobretudo em países devastados pela fome e pela guerra civil como a Libéria ou a Serra Leoa. “Um por um, fomos vendo morrer vários Doryen. Um jovem jogador de básquete, a Princess de nove anos, a Esther de cinco anos, que foi arrastada para um dos centros médicos mas também não sobreviveu. Íamos com eles às clínicas, chegávamos a ligar para as ambulâncias para os virem buscar”, recorda o fotojornalista, representado desde 2013 pela Reportage, uma equipa de elite da agência de fotografia Getty Images. 

“A destruição das famílias é a tragédia central da epidemia. São as famílias que sustentam estas sociedades, por isso os efeitos do ébola na região serão profundos e duradouros”, reflecte Onishi num dos seus artigos para o Times. Com os hospitais sem capacidade de resposta e sem camas e apenas 15 ambulâncias para recolher os doentes em toda a cidade de Monróvia, de 1,5 milhões de habitantes, mães, pais, tios, filhos tinham duas alternativas: largar os seus doentes nas ruas e na frente dos centros médicos ou dar-lhes atenção e conforto, correndo o risco de serem também infectados. “A compaixão torna-se um perigo”, sentencia o jornalista de origem japonesa e canadiana. A transmissão do ébola entre humanos ocorre através de contacto directo com sangue e fluidos corporais de uma pessoa infectada ou pelo contacto com objectos contaminados. Os primeiros sintomas — febre, dores musculares, cansaço — surgem entre dois a 21 dias após a exposição ao vírus.

Mas o perigo de contágio prolonga-se após a morte dos pacientes — os cadáveres são altamente contagiosos durante sete dias. “Estas sociedades têm rituais ancestrais de despedida e de enterro dos seus mortos. Estes costumes estavam a espalhar o vírus ainda mais depressa e a destruir famílias inteiras. Para aquelas pessoas, mudar esses hábitos e ver partir entes queridos sem lhes poder tocar ou fazer uma despedida com dignidade foi um golpe muito duro.” Nas ruas, mesmo com recolher obrigatório e bairros encerrados para quarentena, o desespero era palpável. “Vi de tudo. Pessoas que arrastavam corpos pelas ruas porque não os queriam nas suas comunidades. Havia quem escondesse os mortos e quem pagasse a um estranho para levar os cadáveres às escondidas para uma ilha onde seriam enterrados respeitosamente. E havia também muita gente que continuava a agir como se nada se passasse porque não acreditavam que o vírus existia. Diziam que o Governo tinha criado o vírus, outros achavam que a culpa era dos americanos. Havia uma série de rumores a circular e por isso optei muitas vezes por não usar o fato de protecção. Se aparecesse nas comunidades, onde já havia revolta e negação, vestido naquela coisa branca e brilhante, podia antagonizar as pessoas e colocar-me em risco.”

Daniel Berehulak tornou-se freelance em 2013 e tem trabalhado sobretudo para o NYT. É representado pela Reportage, uma equipa de elite da agência de fotografia Getty Images. As imagens que se seguem são primeiras páginas de vários jornais com o seu trabalho de fotojornalista
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Daniel Berehulak tornou-se freelance em 2013 e tem trabalhado sobretudo para o NYT. É representado pela Reportage, uma equipa de elite da agência de fotografia Getty Images. As imagens que se seguem são primeiras páginas de vários jornais com o seu trabalho de fotojornalista

Daniel Berehulak e a equipa do NYT, tanto a partir de África como de Nova Iorque, criaram um dos registos mais completos sobre o primeiro surto de ébola a atingir níveis epidémicos — um legado com milhares de fotografias, mais de 400 notícias, 50 chamadas de primeira página, dezenas de vídeos e infografias. Deram rosto às mais de 11 mil pessoas que perderam a vida e às 30 mil que contraíram a doença nos três países mais afectados. O surto está agora controlado e a Libéria declarou há três semanas que está livre do vírus. Mas as feridas continuam abertas — só na Serra Leoa há cerca de dez mil crianças órfãs de pai, de mãe ou de ambos. Um número muito restrito de casos, prontamente isolados, foram importados para a Europa (Reino Unido, Espanha e Itália) e EUA através de pessoal médico que se encontrava na África Ocidental em missão humanitária, sem deixar de provocar um certo histerismo mediático nos principais canais de informação internacionais.

“Havia razões para ter medo e muitas incertezas. Por isso, quando cheguei à Libéria, não desatei a correr atrás dos acontecimentos. Tive de me conter. Observei, ouvi, aprendi e tentei absorver o máximo de informação possível para trabalhar em segurança. E é possível fazê-lo com as devidas precauções.” Na sua mente, a missão de informar era mais importante do que tudo o resto e, para o fazer, o fotojornalista tinha de estar vivo e de boa saúde.

“Oitenta por cento do trabalho no terreno é logística. A parte mais fácil é disparar a foto. Conseguir clicar garantindo que estás em segurança no meio de ambientes hostis é mais de metade do trabalho. Nesta última missão no Nepal, para chegar aos locais mais atingidos pelo sismo, tinha de convencer os exércitos indiano ou nepalês a levarem-me de helicóptero nas missões de salvamento e resgate. Havia uma pequena aldeia que não tinha acesso por carro e para lá chegar era preciso escalar cerca de oito horas por um terreno íngreme e em deslizamento. Tudo o que aprendi em toda a minha vida, e não apenas nos meus 15 anos de carreira, ajudou-me a abrir o caminho, a criar empatia com as pessoas, a estabelecer confiança num período muito curto de tempo, a convencer as pessoas da minha integridade. E depois tinha ainda de garantir a minha sobrevivência quando era deixado nalguma montanha: ter equipamento de campismo, saco-cama, comida, água. Ter o portátil e todas as baterias completamente carregadas e o telefone-satélite para transmitir dados.”

Durante as quatro viagens que fez à África Ocidental, Berehulak recebeu dezenas de emails de jornalistas interessados em fazer reportagem na região assolada pelo ébola: “Diziam-me: ‘Estou a pensar ir para aí, é seguro?’ E eu respondia: ‘É, aqui vai a lista de equipamento que deves trazer.’ E depois ficava uma semana sem receber mais mensagens e acabava por descobrir que não tinham aceitado o trabalho.”

O desinteresse dos media internacionais chocou o fotojornalista e, ao mesmo tempo, motivou-o a continuar o seu trabalho. “Não havia quase ninguém a documentar o que se estava a passar. Éramos muito poucos no terreno mas conseguimos influenciar governos e obrigá-los a tomar medidas. Os EUA, por exemplo, enviaram militares, ajuda humanitária e médicos. Conseguimos galvanizar a opinião pública e divulgar informação sobre o vírus a uma escala mundial. É nossa obrigação enquanto jornalistas contar as histórias destas pessoas e se não o fizermos a ajuda não chega e as atrocidades continuam a acontecer. A CNN e a ABC, por exemplo, iam a Monróvia durante três a cinco dias, tentavam recolher o máximo de informação possível e depois fugiam a sete pés. É muito difícil fazer um trabalho inteligente e profundo em tão pouco tempo.”

Para muitos dos seus colegas, “cobrir a epidemia de ébola não é tão sexy como ir para a guerra”. “Não te vai dar aquela imagem de durão. É caro chegar a África e se ficares doente é uma sentença de morte. Só muito recentemente se descobriu que as pessoas podiam sobreviver e, para quem está sentado num escritório em Nova Iorque ou na Europa, estes factores pesam. Eu, por exemplo, sei que em missão para o The New York Times tenho sempre uma rede de segurança caso me aconteça alguma coisa, e isso ajuda, mas nunca tive o número de uma apólice apontado no telemóvel. Conheço muita gente que não aceitaria fazer reportagem sem ter o número do seguro escrito numa folha de papel.”

Até se aventurar como freelance, Berehulak era fotógrafo de agência, representando a Getty Images em Londres, na Austrália e na Índia. “Sempre trabalhei como staff de agência e não tinha sequer os direitos de autor sobre as minhas imagens. Agora, como freelance e colaborando regularmente com o Times, um jornal que tem uma audiência muito abrangente, senti que as minhas histórias receberam muito mais atenção e provocaram mais reacções do que qualquer um dos prémios que já tive. Recebi emails de CEO de organizações não governamentais a agradecer-me. É através do bom jornalismo e de fotografias poderosas que conseguimos interagir com as pessoas.”

A coragem, a paciência e um sentido de responsabilidade e de ética garantiram o Pulitzer a este homem robusto, que aos 23 anos, e após a morte da sua irmã, decidiu largar tudo e iniciar a carreira na fotografia.

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Este momento foi escolhido para representar o trabalho fotográfico premiado. O fotojornalista esteve horas ao lado de James Dorbor e do seu pai, que desesperava por não poder confortar nos braços o filho com oito anos. James morreu já no hospital Daniel Berehulak/Reportage by Getty Images

“As imagens captadas pelo Daniel são as mais memoráveis de toda a tragédia. Ele não queria desistir desta história, era muito paciente e aguardava o máximo de tempo que podia para que os acontecimentos se desenrolassem perante o seu olhar. As suas fotografias são soberbas e demonstram coragem, persistência e um talento para contar histórias inspiradoras”, diz Michelle McNally, directora de fotografia do The New York Times, num artigo publicado online a 20 de Abril, dia em que foram oficialmente anunciados os vencedores do Pulitzer.

A fotografia escolhida para representar o extenso trabalho fotográfico premiado é o culminar de seis horas de espera em frente a um hospital ao lado de James Dorbor, o rapaz de oito anos que, na imagem, é carregado pela equipa médica. Como o fato de protecção não cobria na totalidade o pescoço dos dois médicos, James é transportado numa posição estranha, como que segurado por fios, e evitando ao máximo o contacto com o seu débil corpo. Antes de fazer a foto, Berehulak permaneceu horas ao lado da criança e do seu pai, que desesperava por não poder confortar o menino nos seus últimos instantes de vida. James acabou por falecer horas depois já no hospital.

“Acredito que devemos ter paciência com tudo. Quanto mais tempo passar no local da tragédia, mais oportunidades vou ter de analisar com lógica o que se está a passar. O mundo actual é muito visual. Tanta gente fotografa bem e eu tenho de ser cada vez melhor para que o meu trabalho seja lembrado e se destaque entre tanta informação. Por isso, acredito no poder da grande reportagem. Quero que as pessoas folheiem o jornal e parem para ver a foto e, se possível, que sintam alguma ligação. A minha esperança é que as motive a fazer algo, a doar dinheiro, a ajudar.”

Berehulak, que já fez reportagem em mais de 40 países e venceu três World Press Photo, estava em Times Square a caminho da Reuters, onde se ia encontrar com um amigo, quando recebeu um telefonema do seu editor no NYT a anunciar que tinha ganho o Pulitzer. “Fiquei em estado de choque. Não conseguia pronunciar uma única palavra.”

Meses antes, entre viagens a África, e algures numa das suas muitas “casas”, sentiu na pele a mesma estigmatização que vira todos os dias nas cidades flageladas pelo Ébola. “Fui discriminado pela minha família e pelos meus amigos. Voltei por uma semana e queria conviver com as pessoas mais chegadas. Liguei para alguns amigos e eles diziam-me: ‘Daniel, hoje há uma festa mas preferíamos que não viesses’.” Mais tarde, noutras ocasiões em que regressou a casa, preferiu não avisar ninguém. “Não queria confrontar os meus amigos, nem assustá-los. Eu sabia que não tinha corrido nenhum risco e para transmitir a doença eu teria de estar com sintomas. Foi muito difícil para mim, mas mesmo assim foi apenas uma pequena amostra do que as pessoas passam todos os dias na Libéria. Qualquer pequeno sacrifício que eu suportei não é nada. Eu só lá estava de passagem e no final do meu trabalho podia regressar a casa. Para eles, a vida mudou completamente. Perderam irmãos, filhos, pais. Outros foram rejeitados pela própria família. Esta é a vida deles e não têm como lhe escapar.”

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