A Turquia já não brilha como dantes

A Turquia é mais democrática do que há 20 anos, mas menos do que há cinco

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

A questão subjacente às eleições legislativas turcas pode ser resumida num comentário do analista Mustafa Akyol: “Há uma década, a Turquia era vista em toda a parte como a estrela brilhante do mundo muçulmano — uma dinâmica democracia liberal e uma economia eufórica, conduzidas por islamistas reformadores unidos no Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). Hoje, o mesmo partido está ainda no poder, mas irradia pouco brilho sobre a Turquia.”

A Turquia perdeu credibilidade internacional, frisa o politólogo Ahmet Insel. “Já não tem meios de acção na região. Nem poder de atracção.” E no plano interno? “A Turquia é muito mais democrática do que há 20 anos... mas muito menos do que há cinco.”

O analista americano Graham Fuller publicou um livro muito crítico sobre a política turca perante as primaveras árabes (Turkey and the Arab Spring: Leadership in Middle East, 2014). Mas nele prestou homenagem à “extraordinária primeira década do AKP sob a liderança do primeiro-ministro [Recep Tayyip] Erdogan. Até 2011 terá sido o melhor governo que a Turquia conheceu.” Para lá da democratização e do sucesso económico, da abolição da tutela dos militares sobre a política e de uma política externa visionária, ilustrou a conjunção entre um governo islâmico e a ordem democrática. Era um modelo para o mundo muçulmano. Depois, tudo mudou: hoje, a questão é saber se “a Turquia consegue sobreviver a Erdogan”.

Que se joga nas legislativas de hoje? Erdogan fez delas um plebiscito para impor um sistema hiperpresidencialista. E sobre a sua pessoa. Qual é o objectivo? Responde um opositor, o colunista Kerim Balci: “É o controlo dos quatro poderes — o legislativo, o executivo, o judicial e os media — de forma a tornar-se um presidente que tudo concentra.” Este processo já está em marcha, com as depurações em massa da polícia e da magistratura, o crescente controlo dos media e perseguições aos jornalistas.

O problema não é o presidencialismo. É o facto de “se tratar de um presidencialismo sem contrapoderes”, anota Ahmet Insel. Erdogan encara as eleições como o único instrumento de legitimidade democrática, como a formulação de uma “vontade nacional” que dispensa as instâncias do controlo do poder e tolera mal a dissidência.

Outro analista, Soner Cagaptay, sugere que uma vitória esmagadora do AKP poderá significar “o começo de um sistema de partido-dominante”, similar ao do Congresso Nacional Africano (ANC) na África do Sul desde 1994.

What went wrong?
Que correu mal? A resposta tranquilizadora é de ordem conspirativa: a célebre “agenda oculta” para islamizar a sociedade que militares e secularistas atribuíram ao AKP para o ilegalizar. Erdogan declarara em 1996 que “a democracia é um meio, não um fim”.

No entanto, o tipo de poder dos políticos depende das instituições e das mentalidades. “A vida política turca é historicamente marcada por grandes chefes: os sultões otomanos, Mustafa Kemal [Atatürk], Adnam Menderes... Erdogan segue os seus passos”, adverte o historiador Ahmet Kuyas. E a base de Erdogan é quase metade do corpo eleitoral. O que deve também ser sublinhado é a resistência que o seu projecto enfrenta. Numa década, muitas mentes mudaram. Os secularistas tornaram-se democratas genuínos e não lhes passa pela cabeça regressar à anterior “democracia tutelada” pelos militares.

A conversão do AKP à democracia foi uma necessidade. O desígnio de integração na Europa foi uma alavanca da democratização e da resistência aos militares. Mas, a partir de 2005, Ancara foi perdendo as ilusões sobre a UE. Cresceu o ressentimento da opinião pública em relação à Europa, na convicção de que a Turquia foi marginalizada por razões religiosas. Em 2007, falhou a derradeira tentativa de “golpe” militar. As reformas e as alianças tornaram-se menos urgentes para Erdogan. De resto, o AKP não governou sozinho. Tinha um largo apoio entre as elites liberais e tecnocráticas e a colaboração do movimento Hizmet, de Fethullah Gülen, uma elite islâmica decisiva na opção europeísta da Turquia.

Entretanto, ao longo dos anos, o partido foi mudando. A regra de os deputados apenas poderem cumprir três mandatos seguidos levou a um processo de “renovação” que criou um partido organizado em torno da pessoa de Erdogan e com conselheiros que o temem. Figuras históricas que resistiam a Erdogan e denunciavam o seu autoritarismo saíram de cena. O próprio ex-Presidente Abdullah Gül não reintegrou o partido.

Uma nova geração de dirigentes que deve tudo ao Presidente ocupa hoje as posições de comando e aposta convictamente no presidencialismo. Nas eleições de 2011, o AKP atinge o seu apogeu eleitoral (49,8%). Erdogan decide mudar o sistema político e assumir a Presidência da República.

A ruptura com Gülen, cujos media começaram a criticar não só as tendências autoritárias como os crescentes sinais de corrupção no próprio governo, consuma-se em Dezembro de 2013. Seguem-se uma “caça às bruxas” de grande dimensão e o afastamento de muitos liberais e tecnocratas.

Outro momento importante foi a eclosão das “primaveras árabes” cujo desfecho pôs em xeque toda a estratégia regional de Ancara. Daí em diante, Erdogan lança-se numa fuga para a frente. Perante os protestos do parque Gezi, em Junho de 2013, entrou na “fase do autoritarismo paranóico”, denuncia Akyol. “Interpretou um fenómeno social espontâneo como uma odiosa conspiração inspirada por potências globais.”

A ironia curda
Estas eleições são tão importantes como as que, em 2002, levaram o AKP ao poder. Na opinião do diário Hürriyet, são “a última oportunidade antes da ditadura”. A polarização política e a dramatização são extremas.

Por ironia, a sorte de Erdogan está nas mãos dos curdos. O Partido Democrático do Povo (HDP, pró-curdo) procedeu a uma inovação: decidiu “turquicizar” a sua agenda política. Não defende apenas interesses curdos mas os de toda a sociedade e de todas as minorias. Nos comícios, bandeiras turcas acompanham as curdas. O seu rosto político, Selahattin Demitras, experimentou com êxito esta linha nas presidenciais de 2014: alcançou 9,7% dos votos.

O país decidirá do seu destino através de um método fascinante: a “roleta curda”. O que mais interessa não é a votação dos três maiores partidos, mas a do quarto. Se o HDP ultrapassar a barreira fatídica dos 10%, enterrará as ambições do Presidente. Se ficar pelos 9,9%, dará uma provável maioria avassaladora ao AKP.

Se os curdos ficarem fora do parlamento, é o actual processo de paz que se pode romper. E se Erdogan falhar? Aceitará o veredicto ou terá no bolso um “plano B”?

Em qualquer caso, tempos duros esperam a Turquia.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários