Futebol, realpolitik e civilização

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Não vale a pena diabolizar Sepp Blatter. Basta descrever. Há 17 anos na presidência da FIFA e há 40 no seu aparelho, resignou na terça-feira. Não era apenas um autocrata amável com uma ilimitada sede de poder: era um “intocável”. A FIFA é uma organização que tem o futebol como negócio e que resolve os seus problemas “em família”. Não é escrutinada nem presta contas. A corrupção generalizou-se mas a questão central é outra: um sistema de poder quase perfeito que a alimenta e encobre. É esta a responsabilidade de Blatter.

Ele habituou-se a desprezar escândalos e apelos à demissão porque sempre teve assegurado o voto da grande maioria das federações: 180 dos 209 países membros são pobres. É barato “comprar” os seus votos, não apenas com envelopes de dinheiro mas com benesses e subsídios à actividade das suas federações. E também com um toque político: Blatter é o “presidente dos pobres” e dos “emergentes”. O inventor do sistema foi o seu antecessor e mestre, o brasileiro João Havelange. Este fazia crer que defendia o “resto do mundo” contra a “aristocracia” do futebol europeu. O mesmo repetia Blatter: “Sou o único que vos protege contra a ambição de a UEFA dominar a FIFA.” A demissão de Blatter não eliminará esta fractura histórica nem a sua dimensão geopolítica.

Quem assediou a fortaleza inexpugnável? A justiça americana e o FBI. Onde os europeus foram impotentes, actuaram os americanos. Vladimir Putin acusou o toque e imediatamente denunciou o abuso do poderio americano. Observou o Financial Times: “A sua reacção ilustra o facto de a luta na FIFA se ter tornado num patente teste a uma das questões centrais da política mundial — são os EUA ainda suficientemente poderosos para determinar decisões em organizações globais?” O futebol não escapa ao mundo da realpolitik.

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Sepp Blatter no fim da conferência de imprensa de terça-feira em que anunciou a sua renúncia à presidência da FIFA VALERIANO DI DOMENICO/AFP

Quanto à corrupção, há muitos telhados de vidro. Muitos terão “pago” pelos seus Mundiais: Coreia do Sul e Japão (2002), Alemanha (2006), África do Sul (2010). Para não falar na Rússia (2018) e no Qatar (2022). “Cada Mundial ou cada Olimpíada revela ao mundo o sucesso de uma nação, a sua passagem da pobreza à riqueza”, escreve um jornalista italiano. Esta “corrupção de Estado” é quase irresistível. A corrupção permanecerá, vital é investigá-la e puni-la. Pergunta-se nos corredores: “Seremos capazes de mudar?”

Evitemos a depressão. O futebol é mais do que negócio e realpolitik. É também civilização. O sociólogo Norbert Elias (1897-1990) analisou o desporto moderno, e o futebol, como meio de limitar a violência física e, por isso, produto do processo de civilização. Explicou que na Grã-Bretanha a crescente interiorização do interdito social da violência terá sido uma condição do bom funcionamento do parlamentarismo... 

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