“E onde está deus no meio de tudo isto”

1. A primeira vez que ouvi falar em Timbuktu foi num mail de uma amiga, há pouco mais de um ano. Ela mora do outro lado do Atlântico, o filme ia estrear em Cannes, quem sabe eu estava perto: “O Sissako é o meu cineasta favorito.” Ao contrário dela, nunca estive no Mali, nem saberia dizer se Sissako era do Mali ou da Mauritânia. E agora, vendo Timbuktu numa sala de Lisboa quase deserta, é nela que penso, a minha amiga brasileira-do-Sara, coração de tuaregue.

2. Timbuktu tem a idade de Portugal. Fundada por tuaregues no século XII, tornou-se um dos principais centros de saber no islão medieval. Sempre que os jihadistas do “Estado Islâmico” aparecerem absurdamente associados à Idade Média, podemos pensar nas centenas de milhares de manuscritos de Timbuktu, nos tratados de Matemática e Astronomia. É uma cidade entre o Sara e o rio Níger coberta de areia, cercada por dunas, e a origem do seu nome talvez signifique “lugar coberto por pequenas dunas”. No filme há uma cena em que um dos jihadistas estrangeiros que ocuparam Timbuktu despeja a metralhadora contra uma dessas pequenas dunas, de onde brota um tufo de ervas semelhante a um púbis. É o mesmo homem que se esconde para fumar, enquanto os homens que comanda punem os habitantes locais por fumarem. Os mesmo homens que punem os habitantes locais por jogarem futebol e depois passam o tempo morto a discutir Messi e o último Mundial.

3. Abderrahmane Sissako, o realizador, tem explicado em entrevistas que decidiu fazer Timbuktu depois de um caso que aconteceu no Mali em Julho de 2012. O Ansar Dine (um grupo de jihadistas aliado da Al-Qaeda local) tinha capturado Timbuktu em Abril, impondo a sua versão da justiça corânica: execuções violentas, amputações, chicotadas, interdição de cigarros, música ou futebol. Um homem e uma mulher que tinham três filhos foram enterrados até ao pescoço e apredrejados na cabeça até à morte, por não serem casados. Sissako pensou o filme a partir daqui, de início como um documentário. A equipa chegou a instalar-se em Timbuktu depois de o Anser Dine ter sido desalojado pela intervenção francesa no Mali, em 2013. Mas os jihadistas ainda conseguiram fazer explodir um bombista suicida num checkpoint, e Sissako acabou por mudar o projecto para a Mauritânia. Tendo crescido no Mali, nasceu na Mauritânia, e é lá que hoje vive.

4. Quando os jihadistas tomaram parte do Mali, a minha amiga chorou no Brasil: pelos tuaregues, pelas tendas, pelo gado, pelo deserto, pela água, pela música, pelos manuscritos, pela destruição de todo esse mundo que ela fez seu, uma história de amor ao longo de anos. À distância lunar que o Brasil parecia ter do Sara, lembro-me de ler no meu quintal do Cosme Velho a descrição de como os instrumentos dos Tinariwen tinham sido queimados pelos jihadistas, quando ainda no ano anterior eu vira os Tinariwen fazerem rodar o seu azul-tuaregue na velha Estação Lepoldina, no festival carioca Black 2 Black. Eu nunca chegara a entrar naquelas mesquitas de Timbuktu, e agora os povos do deserto pareciam mais remotos do que nunca. Mas quando os jihadistas recuaram, a minha amiga voltou lá, aos seus tuaregues, em busca de um velho amigo.

5. Timbuktu tem tudo isso, os tuaregues, as tendas, o gado, o deserto, a água, a música, as mesquitas de terra, as ruas de areia e a irrupção violenta das bandeiras negras hasteadas em Toyotas. O “Estado Islâmico” ainda não tinha sido proclamado quando o filme foi rodado, mas tudo no filme contém esse agora que vai do Boko Haram na Nigéria ao “Califado” na Síria e no Iraque. O filme de Sissako é o horror de ontem projectado no horror de hoje. Sissako rodou-o quando aquilo parecia contido ali. Um filme que contém o seu próprio futuro.

6. No retrato desta nova espécie de invasores-colonizadores-imperialistas que são os jihadistas há um non sense, por vezes burlesco, por vezes kafkiano, que talvez só alguém nascido ali como Sissako pudesse desmontar. Um dos exemplos é o permanente jogo de gato e rato da “polícia islâmica” pelos labirintos nocturnos de Timbuktu, de tecto em tecto, de esquina em esquina, atrás de onde a música vem. Situado o crime, os jihadistas põem o ouvido na porta, concluem que os criminosos estão a tocar em honra do profeta, então ligam ao chefe a pedir instruções: “Devemos prendê-los?” Depois, no castigo, o non sense dilui-se em violência pura, como se a violência fosse só um efeito especial para o trailer que a vai promover.

7. Mas nada mais non sense do que recompensar a devoção com o pecado. O bombista devoto será premiado com a orgia eterna, e ao jihadista devoto dá-se em vida uma escrava. A mensagem é sempre a mesma, que a vida humana, esta vida, não vale nada. O “cinema” jihadista promove isso e o cinema de Sissako faz-se contra isso.

8. Entretanto, como Sissako conta, apesar de os jihadistas terem sido oficialmente desalojados, continuam a ganhar o suficiente para Timbuktu não ter sido rodado lá. Para no Mali, diz Sissako, não haver cinemas, nem filmes com mulheres que cantam no colo de homens e rapazes que driblam mesmo sem bola. E, como as areias que impedem os arqueólogos de escavar o passado, o presente vai-se perdendo.

9. Este mês de Junho verei a minha amiga nos antípodas de Timbuktu, tudo será verde e frio, haverá fogueiras. E ao anoitecer, como sempre que nos encontramos, pensaremos em partir.

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