Lotação esgotada para glória de Patti Smith e desespero de Antony

Maior enchente de sempre no segundo dia de Nos Primavera Sound no Porto, no dia em que Patti Smith voltou a ser gloriosa, Antony quase não se ouviu e os Belle & Sebastian e Jungle fizeram a festa.

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Patti Smith vincou que este era o seu festival Paulo Pimenta
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Os Belle & Sebastian revelaram que a sua pop sempre juvenil continua a dar-lhes prazer Paulo Pimenta
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Jungle. Os Jungle, com apenas um álbum homónimo, são já uma máquina muito bem preparada para os palcos Paulo Pimenta
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E ao segundo dia de Nos Primavera Sound o grande destaque foi o público, que afluiu para a maior enchente de sempre do festival. Não existem ainda números oficiais, mas terão estado no espaço cerca de 30 mil pessoas. O Parque da Cidade comporta mais, mas da forma como o recinto está configurado, sendo o conforto prioridade, talvez não muitas mais pessoas. Ou seja, poder-se-ia dizer que sexta-feira houve lotação esgotada.

Vislumbraram-se aqui e ali filas para comes e bebes ou para idas à casa de banho, mas nada que tivesse alterado a fisionomia do festival. A massiva presença de espectadores sentiu-se quando Antony subiu ao palco, lá pelas 24h, com a assistência a dividir-se entre aqueles que queriam desfrutar totalmente da experiência de um espectáculo que exige quase silêncio – a essa hora os outros três palcos não estavam a funcionar, por exigência do artista, e o volume sonoro que saía de palco era baixo, presume-se, por opção – e os que não estavam para aí virados e falavam entre si. Resultado: um espectáculo com demasiado ruído de fundo. Num recinto onde os estímulos à volta são muitos já se sabia que seria muito difícil manter a atenção de todos, mas fica o sabor da frustração, porque ficou nitidamente a ideia que teria sido um acontecimento especial se o silêncio tivesse reinado do início ao fim. 

Por um lado, pelo próprio lugar. Como lançava do palco Howe Gelb dos Giant Sand durante a tarde, “este lugar é magnífico, entre as árvores, o verde dos vales e a brisa que vem do mar”. E depois pela própria encenação audiovisual – com imagens estranhamente belas do filme japonês de 1973 Mr O's Book Of The Dead, de Chiaki Nagano –  e pela orquestra de cerca de 50 músicos do Porto que ladeavam um maestro e o próprio Antony. Ou seja, uma experiência irrepetível. Pelo belo lugar. E pelo espectáculo em si.

Assim, teve brilho, mas por vezes perdia-se a inclinação mais subtil do piano e principalmente da voz de Antony. Nos momentos mais felizes parecia que estávamos num ritual sagrado a céu aberto, nos piores no café da esquina com Antony a cantar na TV ao canto. Vestindo uma longa túnica branca, defendeu com a habitual vulnerabilidade o que vinha apresentar, revestindo canções como Ghost, You are my sister ou Cripple and the starfish de novos arranjos orquestrais, atribuindo simultaneamente maior solenidade, doçura e leveza às suas canções. Curiosamente, o momento mais festejado acabou por surgir quando foi apresentada uma versão de Blind (canção de 2008 de Hercules & Love Affair cantada por Antony), naquele que acabou por ser o concerto mais singular da noite.

O festival de Patti Smith
Antes, ao final do dia, pelas 19h, já Patti Smith tinha vincado que este era o seu festival. Se na quinta-feira o seu concerto se revestiu de comoção a rodos, na sexta deu com intensidade uma aula de história do rock ao vivo. Da lição constava a apresentação na íntegra do seu primeiro álbum, Horses, de 1975, talvez o mais icónico longa-duração dos 11 de originais que registou em 40 anos de percurso.

Logo ao primeiro tema, o transgeracional Gloria, conquistou com naturalidade a multidão, numa relação empática que se manteve até ao fim, embora sem a proximidade afectuosa da véspera. Em Birdland todos os seus argumentos como performer e agitadora vieram ao de cima, com a sua voz intacta a ir do quase sussurro ao grito, enquanto a sua excelente banda de três músicos propunha uma mantra rock hipnótica realçando ainda mais o dinamismo vocal.

Em Free rock fizeram ver que este tinha sido um álbum lançado num contexto preciso da história da cultura popular – o irromper do punk – atacando a canção com vigor e electricidade. Pelo meio regressaram por momentos a Gloria e, no tema final, Elegie, criado a pensar em Jimi Hendrix, ela sublinhou que agora “era dedicado a todos aqueles que de entre vós já perderam entes queridos.” E na interpretação terna não se esqueceu de nomear entes queridos do rock já falecidos, como Lou Reed, Joey Ramone ou Joe Strummer.

No final, já depois de Horses esgotado, houve espaço para duas canções de redenção, que já haviam sido tocadas na véspera, e que nunca falham (Because the night e People have the power). No agitar de consciências ela acredita mesmo que o rock tem o poder de mudar o mundo e faz acreditar toda a gente à sua volta. No contexto de um festival como este, onde as válvulas de escape são inúmeras, Patti Smith surgiu como a figura que nos reposicionou com o essencial das mudanças individuais e colectivas. E fê-lo com uma verdade e nobreza que não se vislumbra muito por aí. E isso é imenso. 

A festa e o que se dissipou

Não era um dia de escolhas fáceis, existindo muitas sobreposições de concertos a que apetecia assistir. Um dos prejudicados foram os canadianos Viet Cong que actuaram parcialmente à mesma hora que Patti Smith. Do que vimos ficou a ideia que o seu álbum de estreia deste ano, assente numa reactualização efervescente do pós-punk, consegue manter ao vivo o mesmo poder catalisador.

Outra escolha difícil: Spiritualized ou Belle & Sebastian? Optámos pelos segundos e não nos arrependemos, com o grupo escocês do mestre de cerimónias Stuart Murdoch a fazer a festa em palco, contagiando a assistência, conduzindo-a até ao palco lá para o fim. 

Apresentaram temas do último álbum, Girls In Peacetime Want to Dance, e revisitaram sucessos do passado como The boy with the arap strap, e acima de tudo revelaram que a sua pop sempre juvenil continua a dar-lhes prazer e isso passa para o lado de cá.

As vozes nem sempre saem bem, às vezes parecem desajeitados em tudo o que nos expõem, mas isso é superado por uma pop consciente das fragilidades para melhor as superar. E foi, mais uma vez, isso que se viu. No final, músicos e plateia, unidos, em palco.

Já bem depois da uma da manhã outra conflituosa resolução, com três concertos em simultâneo estimulantes – Jungle, Run The Jewels e Ariel Pink. Eliminámos Ariel Pink, que já vimos inúmeras vezes, espreitámos Run The Jewels, um dos fenómenos americanos do rap o ano passado, e vimos grande parte do concerto dos ingleses Jungle. Com apenas um álbum, do ano passado, são já uma máquina muito bem preparada para os palcos. É curioso, porque constituem o tipo de projecto que parece ter sido pensado laboratorialmente em estúdio (por Josh Lloyd-Watson e Tom McFarland), alicerçado em elementos electrónicos, mas que ao vivo ganha contornos mais clássicos, através de uma formação de sete elementos que interpreta com grande vigor canções soul-funk.

Por outro lado já geram um efeito de reconhecimento, colocando toda a gente a dançar quando tocam canções como The heat ou Busy earnin’.  São extremamente britânicos na forma como incorporam uma série de influências da música negra americana – fazendo lembrar formações dos anos 1990 como os Stereo MC’s – e as tornam suas. Foram sem dúvida uns dos grandes vencedores da noite.

Bem mais contundente era o ambiente junto dos Run The Jewels de Killer Mike e El-P, dois históricos do rap americano que têm tido um reconhecimento surpreendente pelo projecto a dois. É que aquilo que têm para propor não é o típico produto para o centro do mercado, com os constantes duelos verbais sublinhados por um som de graves opressivo, numa intensa performance clássica de hip-hop para dois agitadores e DJ, que leva muita gente a interrogar-se porque é que o rap não tem uma presença mais forte nestes eventos.

O prémio de concerto mais desconcertante da noite tem que ir para os Sun Kil Moon de Mark Kozelek – com, entre outros, Steve Shelley dos Sonic Youth na bateria. Vê-lo em palco é voltar a acreditar na exposição sem simulacros, sem grandes mediações, com ele a fazer o que lhe dá na real gana, mas com um sentido preciso. Às tantas convidou a cantora libanesa Yasmine Hamdan a subir ao palco com esta a mostrar-se surpresa e reticente, avisando que não sabia inglês.

E assim foi. Com um papel à frente (a canção em causa era o clássico I got you babe de Sonny and Cher) os dois lá se entregaram à função, com ele a expor um vozeirão no limite do cavernoso e ela a limitar-se a trautear a canção. E na verdade funcionou. Pela música, dolente, americanizada, desértica, e pela interpretação improvável, mas genuína, dos dois.  Ele é provocador, mas sabe-o ser. E foi isso que se viu, uma performance no fio da navalha do risível, mas que nos devolve em palco um sopro de vida inigualável, sem plasticidades, indo lá ao fundo de si próprio revolver as entranhas sem medos.

Dir-se-ia que é um pouco disso que falta a José Gonzalez. O cantor sueco goza de grande popularidade em Portugal, perceptível pela forma como a multidão trauteou alguns temas de sonoridade folk cristalina que expôs, como o inevitável Heartbeats, mas rapidamente essas canções dissipam-se no ar sem deixarem rasto.  O contrário das canções de Patti Smith, 40 anos depois, intemporais.

O festival encerra este sábado com os veteranos Underworld e Ride, o português Manel Cruz, os americanos Death Cab For Cutie, Health e Dan Deacon ou os históricos alemães Eisturzende Neubauten.

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