Meses a trabalhar em cave valeram a farmacêutica 50 mil euros por “danos morais”

Início do período de maternidade de Susana foi um “pesadelo”, com ameaças sucessivas de despedimento, mudanças de horário e de funções. Ex-patrão diz que não foi condenado, só chegou a um acordo.

Foto
Susana Morais diz ter sido vítima de perseguição do dono da farmácia durante dois anos RITA FRANCA

Uma farmacêutica conseguiu que o ex-patrão aceitasse pagar-lhe mais de 50 mil euros por “danos morais” depois de, segundo conta, ter sido vítima de uma perseguição que durou “dois anos” e terá começado quando o gerente da farmácia percebeu que ela, directora do estabelecimento, se preparava para engravidar. É uma história de “assédio moral” a que Susana Morais recorda, ainda não refeita da surpresa de ver o ex-patrão, gerente da Farmácia Barreiros (Porto), além de aceitar pagar-lhe tal quantia, aceder a pedir-lhe "desculpa publicamente".

“Fui muito humilhada e estou a dar a cara porque sei que isto acontece com muita frequência. Quero que  as pessoas percebam que é possível resistir e levar um caso destes até ao fim”, explica Susana, 41 anos, e desde há um mês à frente da sua própria parafarmácia em Valongo, onde emprega outras pessoas que, garante,  trata “muito bem”.

Quem lê a acta de audiência do Tribunal de Trabalho de Valongo em que Susana Morais e o dono da Pharma N (Farmácia Barreiros), António Névoa, chegaram a acordo esta semana dificilmente perceberá que ali está em causa toda uma história com contornos fora do comum. O caso não chegou a julgamento. É o acordo de cessação do contrato de trabalho de Susana - que fora contratada para a Farmácia Barreiros como directora. Motivo: “Extinção do posto de trabalho”. A título de compensação pela cessação do contrato a empresa paga-lhe 5900 euros, enquanto aceita desembolsar  50.350 euros por “danos morais”.

Porquê? O representante da farmácia, António Névoa, apesar de sublinhar na acta do tribunal nunca ter adoptado qualquer tipo de “comportamento discriminatório”, admite que alguns factos descritos no processo são susceptíveis de ter causado à farmacêutica danos psicológicos e pede-lhe desculpa. Porquê? Ele não explica.

Ao PÚBLICO, a Pharma N enviou um comunicado em que nega peremptoriamente qualquer tipo de “comportamento assediante”, devido à gravidez da ex-funcionária, ou qualquer condenação, mas não justifica por que motivo aceitou pagar tal quantia a Susana. Frisa que houve um acordo e recusa-se a trazer para a praça pública o que "as partes decidiram não submeter a julgamento”, lembrando que “ teve, ao longo da sua história, e tem, actualmente, várias colaboradoras grávidas" e que "até foi, há cerca de quatro anos, reconhecida pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) com a menção honrosa do prémio Igualdade é Qualidade”.

A história que fica por contar na acta de audiência durou dois anos que foram recheados de “insultos e de humilhações”, na versão da farmacêutica. Tudo terá começado em Junho 2012 quando ela tentava engravidar e o ex-patrão descobriu os resultados de um estudo de fertilidade que acabara de fazer. Susana, que tinha sido convidada para número dois da farmácia com um salário chorudo, passou “de bestial a besta”. 

“Quando cheguei de férias, ele começou a massacrar-me. Queria que eu me fosse embora, eu disse que não”, relata. Depois, foi “a gestora de compras e marketing que me chamou ao gabinete” para dizer que o patrão não a queria mais e a acenar-lhe com um acordo de cessação do contrato de trabalho. “Eu não me despeço”, respondeu.  A partir daí, “foi o descalabro”. Quando voltou de férias, tinha novas funções e um novo horário: passava a trabalhar ao balcão, “de tarde e de noite, sem fins-de-semana”.

Susana, que entretanto engravidou e teve uma gravidez de risco, esteve de baixa e de licença de maternidade. Quando voltou ao trabalho, requereu um horário flexível, como prevê a lei. Resultado? O pedido “foi liminarmente rejeitado”, instauraram-lhe "um processo disciplinar" e  declararam extinto o seu posto de trabalho, elenca. 

O caso ganhou novos contornos quando, em Novembro de 2013, segundo afirma, foi mandada trabalhar para "a cave da farmácia". Os colegas “tinham ordens para não a cumprimentar nem falar” com ela, que diz ter passado “sete meses na cave, sem luz directa, sem ventilação, sem cadeira”, sequer. O que fazia? “Carregava caixotes, recebia encomendas. Passei a fiel de armazém”, sintetiza. Com um salário de dois mil euros por mês, foi aguentando (“precisava do dinheiro”), mas acabou por ficar física e psicologicamente doente, "com uma hérnia discal e uma depressão”.

O pior, recorda agora, foi a luta para avançar com o processo. Dois advogados dissuadiram-na de ir em frente, a Ordem dos Farmacêuticos arquivou a queixa que o sindicato para lá encaminhara. Mas persistiu.  Agradece a intervenção da ACT (Autoridade para as Condições de Trabalho), que foi três vezes à farmácia e instaurou "um processo de contra-ordenação" ainda por resolver, e também da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), que  diz ter “chumbado” o procedimento de extinção do posto  de trabalho.

Depois de ter sido "acusada de ter armazenado um produto fora do sítio", Susana chegou ao ponto de gravar com um telemóvel algumas das conversas para poder provar que o que afirmava era verdade. “Eu estava sozinha e não tinha meio de prova do que estava a acontecer”, justifica.
Há uma coisa que Susana diz que será impossível recuperar. O período inicial da maternidade, que tinha idealizado como o "mais feliz" da sua vida, acabou por ser "um pesadelo". “Isso ninguém me vai pagar", lamenta.

Para Nuno Cerejeira Namora, do escritório de advogados que representou Susana, esta “vitória” tem um sabor especial. Autor de uma tese de mestrado sobre mobbing (prática reiterada de actos persecutórios e discriminatórios), que acaba de defender na Universidade Portucalense, o advogado sustenta que a “a condenação um empregador por assédio moral é um caso excepcional"  e que uma indemnização deste montante é rara, se não mesmo "inédita". Para o advogado, o assédio moral deve ser equipado aos acidentes de trabalho e às doenças profissionais, além de ter de ser consagrada a possibilidade de publicitar as sentenças condenatórias.

Eduardo  Castro Marques, que também defendeu Susana, diz que cada vez mais casos a chegarem aos escritórios de advogados. “O problema é que a maioria das vítimas desvaloriza, convence-se de que não tem importância e acaba por não ir em frente".  "Na próxima década", prevê, "a luta laboral vai centrar-se dignidade no trabalho e a compatibilização da vida pessoal com a profissional".  "As reivindicações antigas (horários, férias, etc), são fáceis de combater. Mais difícil é combater este ataque que é feito em silêncio, dissimulado e ardiloso”. 

O Conselho Jurisdicional da Ordem dos Farmacêuticos adiantou, entretanto, que "deliberou por unanimidade arquivar a queixa de Susana, "dado ter sido impossível aferir em concreto qualquer violação das normas estatutárias" e lembra que não houve recurso desta decisão, proferida em Julho de 2014.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários