O tempo da cartada europeia

Só quem for capaz de jogar no tabuleiro europeu, de aí exibir provas dadas e credibilidade para ousar propor, estará em condições de trazer esperança.

1. Independentemente de nem sempre estar de acordo — e de bastantes vezes estar em desacordo — com as políticas do Governo de coligação e com algumas das suas medidas emblemáticas, percebi desde muito cedo o fio condutor da sua estratégia. Uma estratégia que muitos — em grande parte por falta de compreensão e de conhecimento do contexto europeu (ou, se se quiser, do “constrangimento” europeu) — julgavam nem sequer existir.

Aquilo que a crise financeira trouxe à Europa foi basicamente um enorme crise de confiança recíproca entre os Estados e os respectivos governos. Falta de confiança essa que já aqui ilustrei, por várias vezes, com exemplos de todo o tipo e sorte que vão do bizarro episódio do pepino espanhol à arrogância de algumas declarações e acções sobre a Grécia (ainda antes deste errático, turbulento e pernicioso período de governação do Syriza). 

A crise de confiança entre os Estados e os seus governos que põe em causa o princípio estruturante de qualquer construção federal ou aproximada, justamente o princípio da confiança ou da boa fé federal teve consequências políticas de enorme monta, que desgastaram a União e impediram algumas soluções mais céleres e expeditas. Soluções essas que poderiam decerto ter poupado algumas doses de sacrifício aos cidadãos europeus e, em especial, àqueles dos países mais atingidos (como o nosso).

2. Aquilo que o Governo português compreendeu desde o primeiro momento é que, independentemente do juízo que se pudesse fazer sobre o acerto e a adequação de muitas das soluções que estavam consagradas no programa de assistência económica e financeira, o objectivo autenticamente essencial era reganhar a confiança dos nossos parceiros europeus, dos nossos credores e dos mercados em geral. Em política, tal como na economia, a confiança é um valor absolutamente crucial. Não, por acaso, António Costa, nas suas deambulações programáticas, repete amiúde a palavra “confiança”. Mas aqui o ponto não é o ponto das palavras; é mesmo o nó górdio do poder. Portugal e o Governo português poderiam fazer o pino, dar o salto mortal, amestrar feras indomáveis e ensaiar todo o vezo de acrobacias. Isso de nada valeria, de nada adiantaria, se não fôssemos capazes de suscitar e criar confiança.

Ninguém julgue ou pense que na cabeça do Governo não esteve sempre presente não esteve sempre omnipresente que a crise da zona euro (que tanto nos afectou) precisava de uma resposta europeia, de uma resposta europeia de alcance global. O que havia também e simultaneamente era a consciência aguda de que pouco ou nada poderíamos fazer, enquanto não voltássemos a ser merecedores de confiança, de credibilidade e até de autoridade moral para “falar”, para “propor”, para “arrojar”.

3. É interessante verificar que um líder como António José Seguro tocou sempre nesta tecla e carregou sempre neste pedal: o de que a solução dos problemas portugueses e da zona euro careciam de uma solução europeia e de uma solução global. E chegou mesmo, embora com doses fartas de irrealismo e até de demagogia, a fazer propostas de “mutualização” da dívida e de “mutualização parcial”, procurando com isso “amortizar” o trabalho interno de ajustamento que sempre teríamos de levar a cabo. O seu problema era entre outros de natureza estritamente interior ao Partido Socialista recusar-se a admitir que, antes de podermos propor soluções e programas, antes de montarmos alinhamentos e ententes, tínhamos de recuperar a confiança perdida. E que, sem ela, tudo o mais, fosse plausível ou implausível, realista ou irrealista, isolado ou conjunto, de nada poderia servir.

4. É aqui que o Governo e, em particular o primeiro-ministro acabam de ganhar a dianteira, sem que a maioria dos observadores e comentadores tenha verdadeiramente percebido. António Costa anda entretido com o seu cenário macro-económico e com o seu “programa participativo”, sobre o qual todos podem e devem opinar. Há-de apresentar o tão propalado cardápio eleitoral em breve, já no final da semana. Mas, olhando para os temas que toca e, muito em especial, para aqueles a que dá mais relevo, falta-lhe notoriamente uma visão articulada para a dimensão europeia. Como não pode nem quer reconhecer que Portugal reganhou a confiança dos seus parceiros e que isso se deve com sangue, suor e lágrimas à tenacidade e às vezes obstinação do executivo, também não pode facilmente reconhecer que estamos em condições de lançar uma agenda para a evolução futura da união económica e monetária. Quiçá mesmo de um futuro mais próximo do que supõe, pois os dados da evolução da situação da Grécia e da discussão da renegociação britânica poderão acelerar (e até incendiar) calendários.  

5. Foi aqui que o primeiro-ministro teve uma jogada de mestre, ao avançar com o seu discurso de Florença, com a proposta de um Fundo Monetário Europeu, com a criação de um plataforma permanente de coordenação no Eurogrupo, com o início ainda que esquivo da capacidade orçamental. E, por conseguinte, com a assunção plena da Europa das duas velocidades, embora aberta à passagem para a primeira velocidade, que tão bem pode servir as aspirações de Cameron. O principal problema português dos próximos quatro anos, se as suas lideranças forem responsáveis, não vai ser lidar com a dívida futura ou com os défices futuros: vai ser saber o que fazer com a dívida acumulada, interna e externa, e com o peso asfixiante dos seus juros. É aqui que a maioria, agora crismada com a legitimidade nacional de quem fez o trabalho de casa, pode bater o PS e o seu programa que muitos apodam de prudente e responsável. É que nós precisamos de algo mais: de ambição e de esperança. E só quem for capaz de jogar no tabuleiro europeu, de aí exibir provas dadas e credibilidade para ousar propor, estará em condições de trazer esperança. Seguro, irrealista, falava antes do tempo. Costa, se não tiver cuidado e visão, ficará a falar fora do tempo.

SIM e NÃO

SIM. José Manuel Fernandes. O eurodeputado, mais uma vez, em nome do Parlamento, chefiou, com grande sucesso, a negociação do Plano Juncker. A Europa fica a dever-lhe um impulso para o crescimento.

NÃO. Eleições presidenciais polacas. Andrzej Duda, do partido dos gémeos Kaczynski, pelo seu perfil moderado não parece preocupante. Mas o avanço do populismo da estrela rock Kukiz traz nova fonte de preocupações para as próximas eleições gerais.

Eurodeputado (PSD)

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