Inquérito sobre lista VIP foi conduzido por ex-adjunta das Finanças

Conceição Baptista, a inquiridora nomeada pela IGF para avaliar a actuação do fisco, foi até há menos de um ano adjunta do secretário de Estado da Administração Pública, colega de Paulo Núncio. Finanças afastam conflito de interesses.

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Paulo Núncio ordenou o inquérito à lista VIP, que ficou concluído a 19 de Maio. No dia seguinte, recebeu-o Nuno Ferreira Santos

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, começou por negar a lista de contribuintes VIP. Depois, afiançou que mandar abrir um inquérito ao tema não fazia sentido. O certo é que acabou por fazê-lo, a 16 de Março, quando já não parecia haver dúvidas de que este sistema de alerta existia mesmo. Encarregou a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) de abrir um “Inquérito sobre a alegada existência de uma lista de contribuintes na Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), cujo acesso seria alegadamente restrito”. Um título cheio de ressalvas que produziu um relatório no dia 19 de Maio, que concluiu não haver razões para tanto uso do advérbio “alegadamente”.

A lista VIP existiu, esteve a funcionar entre 29 de Setembro e 10 de Março, e foi considerada “não fundamentada, arbitrária e discriminatória”. Apesar de tudo, o inquérito concluiu que Paulo Núncio não sabia da sua existência.

O inquérito foi conduzido na IGF pela inspectora-chefe Maria da Conceição Leão Baptista, que foi, até 3 de Novembro último, adjunta do secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, que por sua vez era o inspector-geral da IGF antes de ir para o Governo. Ou seja, a investigação foi coordenada por um ex-membro do gabinete do mesmo ministério das Finanças de que Núncio faz parte, e que tutela a Autoridade Tributária, o organismo do Estado que estava em investigação.

O artigo 5.2 do Código de Ética da IGF é claro: “Existe conflito de interesses sempre que os trabalhadores tenham ou possam vir a ter interesses privados ou pessoais em determinada matéria que possa influenciar, directa ou indirectamente, ou aparente influenciar, o desempenho imparcial e objectivo das respectivas funções”. Por isso, o código estabelece um período de três anos de separação entre a actividade na IGF e outras entidades para as quais os seus trabalhadores tenham prestado serviços.

Nesses casos, em que os funcionários da IGF são colocados perante a necessidade de se pronunciar sobre entidades com as quais trabalharam, directa ou indirectamente, nos últimos três anos, prossegue o código em vigor, devem “declarar-se impedidos” a fim de evitar “colocar-se em situações que, da sua actuação ou comportamento, possa resultar um juízo público que coloque em causa quer a credibilidade da IGF, quer a sua própria honestidade”.

Para ter assumido a função de inquiridora, Conceição Baptista teve de assinar, sob compromisso de honra, uma “Declaração de inexistência de incompatibilidades e impedimentos”.

O Ministério das Finanças entende que não há conflito no facto de Conceição Baptista ter sido encarregada de avaliar as responsabilidades funcionais (e políticas) de um organismo tutelado pelo mesmo ministério do qual fez parte. Em resposta a questões enviadas pelo PÚBLICO, o ministério liderado por Maria Luís Albuquerque afirma que “a inquiridora não se considera impedida, nem integra qualquer situação de conflito”, sustentando que o secretário de Estado Leite Martins, que Conceição Baptista assessorou, “não tutela a AT, não tem competência sobre a matéria objecto de inquérito, nem sobre a IGF (a tutela encontra-se delegada no Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais)”.

Por esclarecer ficou a pergunta sobre se existe algum precedente na IGF em que um inquérito a um organismo do Estado foi conduzido por um funcionário com uma anterior nomeação política recente.

Organicamente, a IGF é um serviço do Ministério das Finanças, com autonomia administrativa, que funciona na directa dependência da ministra das Finanças, cujos secretários de Estado têm na sua alçada os diferentes serviços sectoriais.

Regresso a casa
Conceição Baptista é quadro superior da IGF há 23 anos e tem um currículo diversificado. É especialista em Assuntos Europeus e está a concluir um doutoramento em Ciência Política. O seu trabalho final, Jogos de espelhos. Teoria da Guerra e da Paz, foi avaliado com 19 valores. A sua passagem pelo Governo deu-se a convite de José Maria Leite Martins, que foi seu chefe na IGF. O secretário de Estado da Administração Pública, que tomou posse no final de Dezembro  de 2013, nomeou-a adjunta do seu gabinete em Janeiro do ano passado.

A inspectora deixou então o universo das investigações para se dedicar à gestão política de uma das pastas mais difíceis do ministério das Finanças, liderado por Maria Luís Albuquerque. Leite Martins, que dirigiu a IGF entre 2004 (nomeado pelo Governo de coligação PSD-CDS liderado por Pedro Santana Lopes) e 2013 (quando entrou para o actual Governo), tem uma vasta experiência política. Começou por assessorar Durão Barroso, quando este era ministro dos Negócios Estrangeiros. Chegou a director jurídico do ministério. Mais tarde, quando era primeiro-ministro, Barroso, que foi seu colega de faculdade, nomeou-o chefe de gabinete. É daí que transita para a IGF, de onde só sairá para o actual Governo, onde substituiu Hélder Rosalino.

Conceição Baptista foi exonerada, a seu pedido, no dia 3 de Novembro de 2014. Regressou à IGF, já sob a liderança de Vítor Miguel Braz, precisamente no auge da lista VIP, um sistema de alerta que permitia perceber quem consultava os dados fiscais de Pedro Passos Coelho, Paulo Portas, Cavaco Silva e Paulo Núncio. Quatro meses depois, Conceição Baptista foi incumbida de avaliar o caso, e as eventuais responsabilidades políticas do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no mesmo ministério que a inspectora integrou, como adjunta.

O relatório, que o PÚBLICO divulgou na íntegra, não se limita a averiguar o nível de responsabilidades internas na AT no processo que levou à criação e ao funcionamento da lista VIP durante cerca de cinco meses (entre 29 de Setembro e 10 de Março). No documento são retiradas conclusões sobre a própria tutela, neste caso, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Uma das conclusões foi a de que o então director-geral da AT, António Brigas Afonso, que se viria a demitir na sequência do caso da lista VIP, a 18 de Março, informou mal o secretário de Estado, porque lhe garantiu que a lista e os “alarmes informáticos” nunca existiram. Uma declaração que, segundo a IGF, “se traduziu numa informação incorrecta à tutela”.

Paulo Núncio perguntou ao ex-director-geral da AT pela existência da lista VIP a 24 de Fevereiro, uma terça-feira, um dia depois de António Brigas Afonso emitir um despacho a cancelar o sistema de alarme. A resposta de Brigas Afonso ao secretário de Estado é negativa: a lista “não existe nem nunca existiu”.

O NIF de Núncio
O inquérito da IGF deixa pistas sobre o que se passou entre Setembro e Março, mas há procedimentos que continuam a ser um mistério. Desde logo, os critérios de selecção dos quatro nomes. Tal como a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), a IGF concluiu que a iniciativa de montar o sistema de alerta partiu da Área da Segurança Informática “à revelia de autorização superior”. Inicialmente, o chefe da equipa, José Morujão Oliveira, configurou o sistema de alerta com três nomes. Caso algum funcionário fosse consultar os dados fiscais de Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva, o sistema disparava os registos para o seu email. Estávamos em 29 de Setembro e, embora a lista só viesse a ser aprovada a 10 de Outubro pelo subdirector-geral da AT José Maria Pires num dia em que o director-geral estava ausente, a lista já funcionava.

A esta bolsa restrita foi acrescentado o nome de Paulo Núncio, a 23 de Outubro. Mas nem a CNPD, nem a IGF encontraram uma explicação para este facto. Segundo este último inquérito, José Morujão Oliveira diz ter indicado os três primeiros NIF porque os obteve “por pesquisa na Internet”. A quarta referência, de Paulo Núncio, surgiu “na sequência de uma auditoria sobre consultas efectuadas aos dados do senhor SEAF [o secretário de Estado]”. Nada mais é dito sobre esta “auditoria” – nem de quem partiu a ideia, nem sobre quem a conduziu. Há, porém, uma certeza, confirmada no relatório da CNPD: “Não corria nem nunca correu termos na DSAI qualquer processo de auditoria por consulta aos dados fiscais do SEAF”.

O secretário
Poucos dias depois de a IGF dar início ao inquérito, a 19 de Março, a CNPD publica as conclusões da sua averiguação ao caso, que também se encontra a ser investigado pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa.

Conceição Baptista escolheu mais três inspectores da IGF para realizarem consigo o inquérito: dois “especialistas”, José António Oliveira (da área informática) e António Duarte (da área tributária), e um secretário, António Farinha Simão. Este último não é um mero funcionário da IGF.

No primeiro ano do primeiro Governo de José Sócrates, durante escassos meses, de Março a Julho de 2005, Farinha Simão foi adjunto do Secretário de Estado do Orçamento, Manuel Baganha. Quando Luís Campos e Cunha se demite de ministro das Finanças, Baganha sai e, com ele, Farinha Simão. Mas no seu currículo ainda aparece como coordenador do grupo de trabalho de reestruturação do Ministério das Finanças, no âmbito do programa de reestruturação da administração central (de 2005 a 2006).

Depois de passar pelo Governo socialista, Farinha Simão deu a cara pela IGF no grupo de trabalho sobre a corrupção em Portugal, no qual também estavam representadas a Polícia Judiciária e a Direcção-Geral dos Impostos (uma das três direcções que em 2012 viriam dar origem à actual AT).

Em Julho de 2010, o então ministro da Justiça socialista, Alberto Martins, nomeia-o secretário-geral do Ministério da Justiça, mas Farinha Simão só ficaria no cargo até Novembro de 2011, já Paula Teixeira da Cruz era ministra. Farinha Simão apresentou a demissão na sequência de uma polémica relacionada com a doação de mobiliário do ministério, por parte de adjuntos seus, a três instituições privadas.

Para além de inspector na IGF, António Farinha Simão é actualmente presidente do Conselho Fiscal da CP, empresa pública tutelada pelos ministérios da Economia e Finanças. Está na companhia ferroviária desde Novembro de 2013 e termina mandato no final deste ano. Para a transportadora, onde recebe uma remuneração anual de 22.433,18 euros por presidir ao órgão de fiscalização, foi nomeado por despacho conjunto do Secretário de Estado das Infra-estruturas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro, e da Secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco, da equipa de Maria Luís Albuquerque.

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