"Quando ouvi falar de uma comunidade de agressores sexuais, imaginei o pior"

A fotógrafa Sofia Valiente pretende com a publicação do livro "Miracle Village" que o leitor veja as pessoas para além do crime que perpetraram, uma vez que nada apagará o rótulo que as irá acompanhar ao longo da vida. O P3 entrevistou a autora do projecto premiado na edição de 2015 do World Press Photo

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Miracle Village de Sofia Valiente

Existe uma estrada acidentada que rasga a paisagem seca do sul da Flórida. Perdem-se de vista os campos de cultivo de cana-de-açúcar que a rodeiam e que espalham no ar “um cheiro característico” que se assemelha a uma mistura de algodão doce e fumo. Plantada junto a essa estrada situa-se Miracle Village e nela habita uma comunidade de mais de cem agressores sexuais.

“Aqui não há julgamentos, todos os que aqui estão têm o mesmo nome”

“Na América, o rótulo de ‘agressor sexual’ é o pior que se pode ter. É um símbolo de terror.” A fotógrafa Sofia Valiente cresceu a acreditar que estas pessoas eram “monstros”. “Quando ouvi falar de uma comunidade de agressores sexuais, imaginei o pior. Estava muito nervosa por ir até lá. Não sabia o que esperar”, confessou em entrevista ao P3. As pouco mais de 150 casas de Miracle Village estão todas numeradas. No seu interior vivem quase exclusivamente agressores sexuais que já cumpriram as suas penas e que são agora forçados a uma vida em exclusão social. 

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Retrato de Sofia Valiente tirado por um dos residentes de Miracle Village

Sofia Valiente vive a cerca de uma hora de distância do local e sentiu por ele um apelo inextinguível. “O projecto demorou cerca de um ano e meio a concluir, mas vivi lá apenas durante três meses. Fui lá a primeira vez movida pela mera curiosidade e comecei a conhecer alguns dos residentes. Fiquei muito intrigada com as suas histórias, não eram como imaginava que fossem. Foi isso que realmente me levou a continuar com o tema e a começar a trabalhar sobre ele. “

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Rose reside em Miracle Village

Sofia foi, em conjunto com Rose e a mãe de Doug, das únicas mulheres a residir no local. “Éramos nós e um grande grupo de homens solteiros (risos). Muita gente me pergunta como é que foi viver lá: demorou até ganhar a sua confiança, como pessoa; tinham medo de mim, de dizer algo errado, assim como eu tinha deles. Mas sentava-me com eles durante horas a conversar ou mesmo até a ver televisão, algo completamente mundano, nada realmente interessante. Assim começaram a relaxar. Não falávamos apenas do passado ou do futuro, falávamos de muita coisa. Apercebi-me que, para eles, falar do crime era como um disco riscado. Foi algo que contaram vezes sem conta e é algo que define as suas vidas para sempre. Aconteceu há muito tempo e querem ultrapassar isso. É por isso que no meu livro escolhi falar mais do presente.“

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Richard reside em Miracle Village

"Aqui a lei é mais dura"

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Cartas escritas pelos residentes que dão conta do seu passado

Sofia pretende com a publicação do livro "Miracle Village" que o leitor veja as pessoas para além do crime que perpetraram, uma vez que nada fará apagar o rótulo que as irá acompanhar até ao final das suas vidas. Discorda da especificidade da lei americana no que concerne a este tipo de agressão, argumentando que “existe uma hierarquia.” Os agressores sexuais “são os únicos que são obrigados a registar-se e que nunca se vêem livres dessa obrigação mesmo após o cumprimento das suas penas. Isso não é justo. Existe um certo estereótipo sobre estas pessoas, de que são uma espécie de monstros, pessoas horríveis que têm de ser apartadas da sociedade. Na minha experiência, estes tipos não são isso e não encaixam dentro do estereótipo. É necessário que haja, pelo menos, debate sobre o que é real e sobre o que é preconceito. É, quanto a mim, maioritariamente preconceito.”

“A Flórida é um dos locais mais severos para se viver na América quando se é agressor sexual. As leis são mais duras.” Os agressores cumprem regras estritas: são obrigados a apresentarem-se perante as autoridades de cada vez que se mudam para uma outra cidade, esclarecendo que são agressores sexuais; são forçados a viver a mais de 2,5 milhas (aproximadamente quatro quilómetros) de qualquer paragem de autocarro, escola ou local onde crianças congregam. É por esse motivo que Miracle Village se encontra a mais de oito qiilómetros da aldeia mais próxima e a 64 de distância de uma cidade.

A fotógrafa acredita que Miracle Village é um lugar muito positivo. “Sinceramente, é o único local com estas características que alberga estas pessoas e que não é criado pelo Governo. É a Igreja que quer ajudar estas pessoas. Acho que é negativo que estejam tão isolados e que sejam colocados na situação de estarem separados das suas famílias e da sua vida passada. É muito difícil, essencialmente, retomarem as suas vidas. Esse é o único aspecto negativo. Mas deve-se apenas à lei, que os mantém tão afastados. Eles sentem-gratos por viver em Miracle Village. Muitos eram sem-abrigo antes de irem para lá. Antes, Doug vivia numa tenda, e está muito grato. O Matt é um grande amigo do David e criou uma ligação com a mãe dele. O Matt nunca tinha tido uma mãe antes.”

“São apenas humanos, como nós”

Sofia Valiente acompanhou mais de 50 pessoas e as que figuram no seu livro, apenas doze, são aquelas cujas histórias melhor ilustram a situação de ser agressor sexual e viver naquele contexto.

As relações entre os habitantes desta aldeia tão particular são tudo menos particulares. “Os mais novos juntam-se e passam tempo, tal como aconteceria numa comunidade qualquer. Foi a Igreja Católica que fundou Miracle Village e é também quem a gere. Certificam-se que todos os recém-chegados têm tudo o que necessitam para se instalarem no novo apartamento. Existe uma igreja, actividades de grupo, e têm sessões de “terapia do agressor sexual”, que é obrigatória por lei. Fazem estas coisas todos juntos. Tomam conta uns dos outros devido às enormes limitações de quem vive no meio de nada. Se alguém precisa de uma boleia até à farmácia pode pedir boleia a um vizinho. Eles entreajudam-se.” 

Ben vive com a mãe, Gene encontra afecto nos seus animais de estimação, David e Matt trabalham na paróquia, Richard é gago e sonha encontrar uma namorada, Rose é a única mulher residente e sonha rever os filhos, Tracy é seropositivo, foi libertado por esse motivo, e conheceu o filho recentemente, Lee passou 12 anos na prisão depois de apenas 18 anos de vida fora dela, Mike quer muito apaixonar-se, Doug era sem-abrigo e agora tem um tecto. A natureza dos seus crimes é a mesma, mas as histórias são muito distintas. No final do livro, Sofia compila histórias escritas pela mão dos próprios habitantes de Miracle Village (ver coluna da esquerda).

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