Acalmar a tempestade da alma

O sucesso significa para mim conseguir ler "Ulisses", de Joyce, do início ao fim, e para outro ter dinheiro suficiente para passar quinze dias em Acapulco

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Mike Kniec

Xamãs, autores de auto-ajuda e psiquiatras conceituados, tais como Epicuro, coincidem no seguinte: foge-se à dor agindo, procurando prazeres simples, estando atentos ao que nos rodeia, ancorados no momento presente. Nada nos deve apagar a fome de desejar o mundo inteiro. O animal racional não se contenta com pouco. Não é excessivo aspirar a mais. O que nos prejudica é querer algo perfeito.

Buscar a perfeição não nos traz felicidade ou serenidade, mas apatia e frustração. No conto de Eça de Queiroz intitulado “A Perfeição”, encontramos um Ulisses profundamente infeliz, um homem que, não obstante se encontre em Ogígia na companhia da mais do que perfeita ninfa Calipso, sente falta daquilo que não tem, a imperfeitamente perfeita Penélope. Tendemos a não pensar como Ulisses. Julgamos ser possível alcançar a perfeição, não aceitamos os erros e defeitos dos outros, nem os nossos. O que aconteceria se, em vez de sonharmos com ninfas, com mulheres existentes em lado nenhum, concedêssemos atenção a uma mulher bem real, a nossa, a criatura mais perfeita de todas as imperfeitas? O risco de sermos felizes na nossa condição de mortais seria elevado.

Evitar ou recusar a perfeição. Eis um passo para acalmar a tempestade da alma. Do escritor não escorrerá a prosa fluida que na sua mente existia. Os amigos falhar-nos-ão sempre de algum modo. O emprego aborrece, chateiam as oito horas no escritório. O desemprego mata. A escassez de dinheiro aflige-nos sobremaneira. Os problemas continuam por resolver, o dia não termina às dez da manhã. E agora?, pergunta-se a pessoa afogada nas suas próprias lamúrias. Agora, aconselharia o sábio, levanta-te e age para que não sejas espectador da tua existência. Falhar não é falhar quando sentimos que estamos a acertar.

Há opções, escolhas, caminhos diferentes. Quando nos perguntam para que serve o nosso curso de História, devemos ter coragem para afirmar que serve para ler romances de cordel ou mesmo para fazer absolutamente nada. Falhar não é exactamente falhar. Para que serve um curso? Para que serve a minha vida? Se nada do que faço roça a perfeição, para quê fazer algo? Desejamos o sucesso, um sucesso que não existe hoje, nem nunca. O sucesso significa para mim conseguir ler "Ulisses", de Joyce, do início ao fim, e para outro ter dinheiro suficiente para passar quinze dias em Acapulco. O sucesso de um é a visão do inferno para o outro. O meu caminho não é o dos outros, é a mim que devo contentar, não posso viver insatisfeito por ser aquele que quis ser e ao, mesmo tempo, não conseguir ser como todos os outros que não são iguais a mim. Eu tenho esta cara, este cérebro, e resisto, enjeito estereótipos, imagens de sucesso e de beleza que me impingem.

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