“O FITEI também é um sítio para se discutir a restruturação da dívida”

O novo director artístico do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica quis fazer da edição em curso até dia 21 “uma espécie de estaca zero”, mas também um regresso às origens profundamente politizadas de um festival iniciado em plena euforia pós-revolucionária: “Defendo o acesso dos artistas aos meios de produção”

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Gonçalo Amorim Adriano Miranda

Convidado a reabilitar um dos mais históricos festivais portugueses depois de ter passado os últimos anos a reabilitar outra instituição em crise – o Teatro Experimental do Porto (TEP) de que o seu avô, Orlando Juncal, foi aliás fundador –, Gonçalo Amorim, 38 anos, os mesmos que o FITEI, sabe que quer fazer dele um lugar para discutir o país e a crise. Mesmo que ainda não saiba, com o festival já na rua, quanto dinheiro vai ter para isso.

O que o trouxe à direcção do festival?
Um orgulho grande: o FITEI está para o Porto, para o Norte do país e até para Portugal como uma referência, e mantém uma cotação internacional, especialmente no espaço latino-americano. E também, olhando para o panorama artístico, a vontade de criar alternativas ao eixo Berlim-Londres-Nova Iorque, que tem sido muito programado em Portugal. O FITEI é um espaço privilegiado para que se possam encontrar outras latitudes na programação.

Em que estado encontrou o FITEI?
Tinha chegado o momento de se encontrar uma renovação – artística e geracional. O FITEI teve momentos muito carismáticos com [as direcções de] Júlio Cardoso, António Reis e Mário Moutinho, mas depois da projecção dos anos 1990, tempos de fartura em que trouxe espectáculos grandiosos e estreou em Portugal companhias como Els Comediants ou La Fura dels Baus, era preciso renovar. O Mário Moutinho [director entre 2005 e 2014] tentou, já com outras condicionantes económicas, iniciar esse trabalho. Até que o corte [em 2013 o festival viu chumbada a candidatura aos apoios da DGArtes] precipitou a sua saída. A cooperativa chamou-me com a intenção clara de recuperar o financiamento do Estado.

Como é que se reabilita uma instituição depois desse descrédito?
Reabilita-se o FITEI não tendo medo de errar, porque à partida as comparações são desvantajosas para mim. Ambas as instituições que dirijo, TEP e FITEI, tiveram tempos áureos de uma força e de um carisma que com os constrangimentos actuais dificilmente conseguirei atingir com o mesmo impacto – e estou a falar também do número de espectadores. Reabilita-se o FITEI evitando repetir os modelos de sucesso, mas ao mesmo tempo buscando inspiração na génese desse sucesso, que é indissociável do facto de os fundadores terem pertencido a uma geração engajada. O que segurava estas instituições era uma massa crítica geracional muito politizada e, ao mesmo tempo, um clima pré-revolucionário, no caso do movimento de resistência do TEP, ou revolucionário, no caso do movimento celebratório do FITEI. Se no TEP a questão era recuperar a génese experimental da companhia, a sua matriz de pesquisa, preponderância plástica e força política dos conteúdos, no FITEI o que me parece fundamental, e esta edição espelha isso, é agrupar uma massa crítica e uma geração que possam aguentar o festival por mais 38 anos, embora o meu projecto seja apenas para dois.

Qual é então o programa deste FITEI?
Neste primeiro ano, face às restrições económicas – e neste momento não está ainda confirmado o apoio da DGArtes, que de qualquer modo viria sempre em cima das datas do festival –, quis fazer uma festa e uma reunião da classe, um toca-a-reunir do teatro português contemporâneo. Vi-me muito naturalmente a telefonar para a minha geração e a imaginar como temática principal um ponto de situação geracional, relevando fundamentalmente os artistas portugueses de teatro nascidos na década de 70 ou nas suas margens – grosso modo, as companhias que nos últimos dez anos têm conseguido afirmar-se e, no meio da crise, fazer circular os seus espectáculos. Comecei aí a tentar encontrar – e não foi muito difícil – os traços distintivos desta geração.

Que são?
Uma preocupação com a nossa memória como país, sobretudo na produção dos últimos cinco anos; a escrita autoral, muitas vezes colaborativa; e, quando não há escrita textual, uma escrita para o espaço, cenográfica. Há uma quantidade de criadores que lançam o espectador numa reflexão sobre o que é estar em Portugal hoje – e essa recorrência de nos espelharmos em cena tem ganhado urgência. Isso é particularmente evidente quando lanço o repto a uma comunidade residente fora de Portugal com a ideia de criar um ciclo chamado Expatriados que consiga mapear os artistas portugueses ou falantes de português que decidiram trabalhar no estrangeiro. Portanto haverá um duplo ponto da situação geracional, juntando os que estão aqui a resistir e os que partiram para desenvolver os seus projectos lá fora, muitos dos quais já nasceram nos anos 1980. É por isso que o festival começou com o espectáculo Canções de Pontaria, que são as nossas canções de fraldas e dizem coisas espantosas como “Mais vale ser um cão raivoso/ do que um carneiro/ enrabado pelo pastor”, que de repente voltam a soar de maneira vital. São as canções que moldaram o regime democrático contemporâneo da minha geração, a mais privilegiada de todas as que estão vivas em Portugal: não passámos nem as dificuldades dos nossos pais nem as dos mais novos que nós. Isso é o ponto de partida deste FITEI: que sentido faz o teatro neste momento, o que é que andamos a fazer, quem é que queremos atingir? Gostava mesmo que fosse uma edição política – e de conseguirmos, embora não se façam revoluções por decreto, encontrar capacidade de resistência e formas de travar a espiral recessiva. Este festival é um sítio para se discutir modelos de programação, mas também a restruturação da dívida.

Há de facto um paralelismo entre as operações de resgate do TEP e do FITEI. Tem uma atracção pela ressurreição de instituições?
A questão é se sou tétrico, se tenho um dark side? Não. Sou é muito politizado e olho para a arte também através da economia – acho que a vida precisa absolutamente de poesia, mas defendo o acesso dos artistas aos meios de produção. Sempre tive mais vontade de ir à procura deles do que de me afirmar como personalidade artística individual. Há imensos casos, muitos deles brilhantes, de artistas que se afastaram da cidade, mas eu gosto do sítio da decisão, do sítio onde posso ter acesso aos espectadores, aos meios de produção, ao dinheiro; é aí que sinto que devo estar. E esta ligação uterina ao Porto é forte... se calhar não teria este empenho numa instituição de Lisboa. Mas se em relação ao TEP já se conseguem ver alguns frutos da renovação, em relação ao FITEI é absolutamente prematuro dizer se a minha passagem por aqui é reabilitadora de alguma coisa. Para já o que podemos ver é uma avaliação positiva da DGArtes, mas nem sequer é conclusiva.

O que é que ainda pode acontecer?
O nosso orçamento em dinheiro é de 120 mil euros, 85 mil dos quais (esperamos nós) virão da DGArtes no âmbito dos Acordos Tripartidos. A primeira avaliação, embora nos coloque em segundo lugar nacional, propõe um corte de 25%: o FITEI passaria a receber apenas 63,5 mil euros. Reclamámos e esperamos ainda poder voltar aos 85 mil.

120 mil euros é bom ou mau?
É um orçamento muito baixo para fazer um festival de teatro e em particular este que eu me propunha fazer. Mas sei que há colegas meus, alguns dos quais estão neste FITEI, que ainda não fazem ideia se vão receber financiamento da DGArtes, sendo que estamos praticamente na segunda metade do ano [a entrevista foi feita um dia antes da publicação dos resultados]. A perspectiva de financiamento e a solidez de algumas parcerias mostram credibilidade e vigor; mas não é responsabilidade única e exclusiva do FITEI nem de nenhum outro agente cultural em Portugal responder às questões de financiamento. É muito habitual ouvir: como é que espera financiar o seu projecto? Eu espero que haja decisões políticas que o financiem, e trabalho diariamente para ele ser credível e pertinente para a cultura em Portugal. Uma política cultural é urgente também para decidir o que se financia, porque o acesso à cultura é um direito constitucional que eu defendo, e nisso não tenho medo de ser chato. Não faz sentido lançarem-nos a todos no empreendedorismo, no “agora safa-te” – e esta cidade teve isso durante 12 anos.

É uma edição muito pouco internacional...
Não é! Tem quatro espectáculos espanhóis, um francês, dois brasileiros. Houve edições bem menos internacionais.

Mas o foco não é internacional. Havia mesmo vontade de fazer um ponto da situação nacional ou os constrangimentos financeiros não deram alternativa?
Quisemos que a dimensão da “expressão ibérica” inscrita no nome não ficasse cortada, apesar do ímpeto nacional. Temos espectáculos espanhóis da rede ESMARK e uma companhia brasileira notável, a Andaime, que estará cá também a trocar peças com companhias da cidade e a fazer um workshop que produzirá resultados – sinalizando também a minha intenção de ir à procura deste filão muito vivo na América Latina.

É esse o território prioritário?
Sim – e Espanha.

África não interessa?
Interessa. O FITEI já recebeu inúmeros espectáculos africanos, mas o espaço latino-americano foi sempre o mais privilegiado, também porque é o que tem mais produção. No entanto, eu avancei para a programação à procura de soluções – não pudemos, por incapacidade financeira, trazer [o espectáculo] Uma Árvore, que criou polémica em Luanda por se ter estreado num teatro em vias de demolição, o Elinga. Mas uma das curadoras do ciclo Expatriados é a Marta Lança, uma especialista em cultura africana com quem quero trabalhar. E com o Oriente também – vamos receber uma expatriada do Japão.

Foi também um expatriado, dentro do país. Que diferenças há entre o Porto de 2010, o ano em que regressou, e o de 2015?
A cidade teve uma mudança tremenda com o novo executivo, uma explosão: o Porto tornou-se frenético. Quando cheguei havia um Teatro Nacional São João a apagar os fogos todos – um trabalho extraordinário do Nuno Carinhas de respeito pela classe, de cavalheirismo –, mas fazia muita falta uma programação mais intensa de dança e de artes performativas, e o Tiago [Guedes] veio colmatar essa deficiência estrutural [no Teatro Municipal Rivoli]. E de repente há público para a dança, há público para o teatro, e a cidade aguenta bem. Os próprios grupos, que estavam atrofiados, de repente parecem ter urgência em mostrar o que estão a fazer. Mas há consciência de que não se aguenta este ritmo: é um ano de muita programação, de muita reflexão, de muita festa, mas não vai poder ser sempre assim. Para não esgotar o público, para não esgotar as equipas.

Como encaixa o FITEI no mapa dos festivais internacionais de artes performativas em Portugal, e nomeadamente o Festival de Almada, o Alkantara e o Próximo Futuro?
São três festivais da Área Metropolitana de Lisboa, e está tudo dito: o FITEI é fundamental para o Norte de Portugal, é fundamental para o Porto. Vem daí toda a solidariedade que recebeu quando perdeu o financiamento: não é aceitável, e tem de haver responsabilização política, que esta região não possa ter um festival quando em Lisboa crescem como cogumelos. Não é um território que necessite da circulação de espectáculos? Não é um lugar bom para estabelecer programações em rede? Qual é o problema, porque é que esta cidade não pode ter um festival internacional a operar nestas áreas? Será uma decisão política mesmo, de boicote centralista, género TGV a não passar pela zona do país com maior PIB? Portanto: a relação com os festivais de Lisboa é à partida de rivalidade: antes da parceria, há a necessidade urgente, política, de defender que tem de haver aqui um festival como este; a partir daí, todas as parcerias são possíveis, e esses festivais são dirigidos por pessoas com quem tenho um diálogo fluente. Aliás, passámos para 2016 o nosso espectáculo de abertura, da Christiane Jatahy, porque encontrámos abertura em Lisboa para coproduzi-lo com o São Luiz, o Maria Matos e o Alkantara.

Há uma questão que o próprio programa do FITEI põe, Ainda festivais. É uma pergunta retórica ou não sabe mesmo para que serve um festival de teatro?
O encontro dos dias 12 e 13 serve mesmo para questionar para que é que os festivais servem, num tempo em que as programações culturais regulares são extensas e com apresentações de apenas dois ou três dias, como se vivêssemos num festival contínuo. Vamos olhar para vários modelos. E testar a nossa resposta de que um festival é também uma festa, uma reunião de classe com uma agenda – o ponto de situação geracional este ano, a cenografia no próximo.

Será o próximo foco?
Já me disseram que este programa é à minha imagem: faço um primeiro ano mais engajado, político, centrado nos conteúdos, com forte componente colectiva, geracional e de classe; e em 2016 aventuro-me no gosto pela plasticidade que tenho nos meus espectáculos. Mas dedicar um festival à cenografia é pôr o bold na ideia de que, também por efeito da crise, os espectáculos têm perdido capacidade de comunicar para além dos conteúdos, dos conceitos e das palavras; tanto no teatro como na dança, o lado conceptual tem-se sobreposto à componente imagética, poética e plástica. Vamos ser mais uma vez contracorrente...

 

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