O diabo do capitalismo, segundo Stravinsky

Um espectáculo com inteligentes soluções para dialogar com a música e as ideias de Stravinsky, numa produção muito equilibrada de The Rake's Progress.

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Ao coro - entre o bordel, o leilão e a casa de loucos - foi exigido um trabalho de palco nada fácil que conseguiu resolver no seu conjunto sem perder o fio da música Enric Vives-Rubio
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Anne Truelove, a única personagem "positiva" de The Rake's Progress, mulher portadora do verdadeiro amor (até no nome) foi tratada com especial cuidado nesta produção Enric Vives-Rubio

A nova produção operática do Teatro de São Carlos é sinal de vida.

The Rake's Progress, de Stravinsky, não é apenas uma obra importante na história da ópera, mas é também uma ópera problemática. A encenação de Rui Horta foi capaz de enfrentar os seus problemas com pés e cabeça, propondo aos espectadores que sejam capazes de sentir a força da música de Stravinsky mas ao mesmo tempo reflectir sobre o que estão a ver e a ouvir.

Numa opção corajosa e interessante, Rui Horta propôs um corte para o segundo intervalo num momento que não coincide com o final do segundo acto, por razões estruturais e dramáticas que se justificam plenamente. A encenação e a direcção musical tiveram o mérito de revelar a música do compositor russo (escrita no período em que vivia em Hollywood) sem esquecer que ela é música para teatro. A orquestra esteve à altura do desafio e, embora possa ainda corrigir algumas imprecisões de ritmo e dar ainda mais pujança à cena, foi capaz de equilibrar o cómico e o dramático que se encontram sempre também na música.

Um conjunto equilibrado de cantores nos papéis principais ajudou: Luís Rodrigues foi um Shadow mefistofélico q.b., sem perder o bom humor, e pode variar ainda mais os óptimos recursos expressivos que possui; Tuomas Katajala, de origem finlandesa, foi um tenor impecável e fez um belo final em que Stravinsky pede (outra vez) ajuda aos gregos, voltando ao mito de Orfeu mas desta vez com Tom e Anne transformados, na loucura de Tom, em Vénus e Adónis. Mais uma vez a encenção resolveu bem a cena com uma barca que visita os infernos "interiores" de Tom.

Loucura de Tom Rakewell e beco sem saída de Igor Stravinsky, que recorre a mitos fundadores para refazer a sua obsessiva oposição de cidade e campo, criticando moralmente a civilização bárbara do capitalismo (como maldade abstracta) para lhe contrapor a pureza da natureza. Ali a maldade e a tentação são citadinas, enquanto a bondade é verde como os bosques do início da ópera. Problemáticas oposições que a encenação foi resolvendo com bons golpes de teatro e excelentes opções cenográficas, sem deixar a música ficar fechada num fosso "neoclássico".

Anne Truelove, a única personagem "positiva" de The Rake's Progress, mulher portadora do verdadeiro amor (até no nome) foi tratada com especial cuidado nesta produção. Ajudou a boa prestação da canadiana Ambur Braid, que conseguiu ao mesmo tempo dar corpo e voz à única personagem verdadeiramente lírica do princípio ao fim, mas com uma complexidade maior do que poderia parecer e que a faz, por vezes, tornar-se soprano dramático. Pois ela não é, nesta encenação, apenas uma ingénua submissa, mas uma mulher que vai, por amor, à procura do que já sabe - vai cumprir uma missão moral, ditada pelo coração. A força dramática de Anne faz toda a diferença, pois assim se desfazem as oposições stravinskianas que empurram as outras figuras femininas para o grotesco ou para a expressão do caminho do mal, sejam elas esposas barbudas ou prostitutas. Ao coro - entre o bordel, o leilão e a casa de loucos - foi exigido um trabalho de palco nada fácil que conseguiu resolver no seu conjunto sem perder o fio da música.

O mais interessante em The Rake's Progress não é ser a última ópera neoclássica de Stravinsky (com Mozart sempre à espreita), que confirmou em 1951 o seu afastamento temporário do caminho de umas certas vanguardas, mas as questões que levanta ainda sobre a sociedade actual. Nesse sentido, esta produção é inteligente e certeira, porque questiona os dados de Stravinsky, sem os ignorar, e fazendo viver a música, em particular a das duas fabulosas últimas cenas da ópera. O capitalismo tem o seu lado de leilão absurdo, mas não é "uma expressão do mal" nem é "o diabo". Senão diria, moralizador como o diabólico Nick Shadow: "quem me dera não existir".

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