Um testemunho: do irmão que não tive ao irmão que tudo me deu

Quando em criança me confrontava com amigos que viviam felizes entre irmãos, lamentava-me interiormente de ser filho único.

Quando em criança me confrontava com amigos que viviam felizes entre irmãos, lamentava-me interiormente de ser filho único, de não ter um par doméstico para brincar e com ele(a) partilhar alegrias e desgostos. Fui crescendo nessa frustração, quando comecei a ganhar contacto com leituras universais como as dos irmãos Grimm ou do afamado trio Huxley, ou ainda ao me familiarizar com as lendas dos míticos Rómulo e Remo, fundadores de Roma, que, nas mais diversas narrativas, me foram acentuando um travo amargo de saudade dos irmãos que não tive.

Por muito que se visse momentaneamente abalada essa convicção com o conhecimento do fratricídio relatado no Génesis Caim vs. Abel ou com a complexa tessitura do parricídio levado a cabo pelos filhos e irmãos, magistralmente urdida por Dostoyevsky na sua imortal obra Os Irmãos Karamazov, a realidade é que a sensação de perda de uma enorme oportunidade não me abandonou. O défice afetivo de fraternidade viria até a aprofundar-se com a perda precoce do meu pai, aos 16 anos, e com o imperativo dela decorrente de me fazer homem em plena adolescência para, com uma Mãe cultural e linguisticamente fragilizada, fazer face às pesadas responsabilidades de assumir o leme da governação de uma casa subitamente amputada da sua referência capital. É o que primeiro evoco neste Dia dos Irmãos, hoje, 31 de maio, e rola uma petição para o instituirmos formalmente.

Já adulto, com a cumplicidade ativa da minha Mulher, assumimos responsavelmente o projeto de uma família numerosa. Banhados com a graça de 9 filhos, vivos, saudáveis, responsáveis e solidários, mais tarde acrescentados de três genros e duas noras simplesmente maravilhosos, outros tantos filhos que tomei de empréstimo, aprendi com todos eles o sortilégio de uma vida fecunda, assaz ruidosa mas abertamente partilhada, entre irmãos. Essa intensa experiência comunitária, alargada, prolonga-se hoje nos netos, que somam já o número redondo 8, com tendência para 9, já no próximo período estival. Nesta etapa última, perpassada de sublimidade, de uma vida recheada de episódios e rica em emoções, na qual saboreio a “sobremesa da vida”, ou seja a magia de uma nova dimensão da afetividade que é proporcionada no convívio com os filhos dos meus filhos, redescubro nos netos singulares e nos netos gémeos a dádiva superlativa do dom da alegria e da felicidade, no recomeço cíclico do mistério da história humana.

Mas a narrativa não se esgota aqui. É que, em boa verdade, a Providência foi-me prodigalizando irmãos autênticos, não de sangue mas de laços ainda mais fortes e inquebrantáveis, ao longo da vida.

Quero devo nesta ocasião homenagear uma pessoa extraordinária, um verdadeiro irmão, a quem tudo devo. Foi em outubro de 1965, tinha eu escassos 18 anos, quando me foi dado descobrir, boquiaberto e fascinado, a inteligência inimitável, a alegria transbordante, a coerência superior, a entrega generosa no serviço público à Pátria e ao seu próximo, sem limites de horas ou de cansaço, enfim, a personalidade marcante, com a qual tudo pude aprender. Lembro-me, como se fosse hoje, da tertúlia na Residência de Estudantes das Avenidas, em que o Adelino nos guiava na introdução aos meandros da Universidade, desvendando aos nossos olhos de caloiros inexperientes as várias facetas do que nos esperava nessa dobra complicada da sequência de estudos secundários para superiores.

Foi como que o enlace espontâneo de um afeto cúmplice, construído com naturalidade, e fortalecido ao longo de 15 anos de uma extraordinária viagem comum. Para ele, Adelino, não havia montanhas intransponíveis, nem dificuldades insuperáveis; dotado de uma força interior inabalável, para ele tudo era solucionável, toda a esquina da história constituía uma oportunidade soberana; a sua Fé coriácea era um hino permanente à sábia capacidade do ser humano para se ir afirmando sempre melhor, constantemente perfectível.

Dou graças a Deus Pai pelo Dom que para mim foi o Adelino, sempre disponível para me ouvir, como se existisse só para mim e como se os meus problemas fossem para ele os únicos que ele quereria escutar e comprometer-se a ultrapassar. Foi um convívio assíduo, diário quase, que me escorou nas fases mais difíceis do meu percurso profissional, e pessoal, durante os 15 anos que durou até ao seu desaparecimento trágico, naquele fatídico 4 de dezembro de 1980, dia em que o país se viu ceifado da mais brilhante, e promissora, das suas figuras públicas do pós-25 de abril.

Não passará dia em que não evoque o Adelino.

Pois é nos momentos de maior dificuldade que ouço a sua gargalhada, sonora e contagiante, escuto a sua palavra de otimista impenitente, quais sons que me impelem para a frente e me dotam do quantum de ânimo para superar as agruras e os desânimos que vou defrontando, sobretudo no outono da vida.

Muito obrigado, querido irmão Adelino, por tudo quanto me deste e continuas a dar. E bem hajas, sobretudo, pela tolerância que revelas em me continuares a perdoar tantas e constantes fragilidades, inclusive infidelidades, aos projetos de grandeza com que nos atraíste, seduziste mesmo, tal a sua força regeneradora e sonhadora de um país melhor para todos nós e para as vindouras gerações de portugueses.

Descansa, meu irmão Adelino, o teu desígnio realizar-se-á.

Professor universitário, ex-ministro da Educação (1987-1991)

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