Traje de luces fundidas

Ao PP arderam 2,4 milhões de votos. O PSOE perdeu 700 mil nas eleições municipais e autonómicas. Será que o fim do bipartidarismo significa o fim do corruptismo, do austerismo e da conversa-de-chachismo que assola Espanha desde 2011? O presidente de Castela-Leão pediu a Rajoy que se olhasse ao espelho antes de avançar para as eleições gerais. Mas o que vê Mariano no espelho rachado do PP?

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Mariano Rajoy Brey (n.1955, Santiago de Compostela) foi um líder do PP — Partido Popular espanhol que, depois de ganhar perdendo (ou de perder ganhando) as eleições regionais, em vez de olhar para o espelho e se demitir, como os históricos do partido sugeriram, reagiu com firmeza: lá para, hum… Julho ou coisa assim vai pensar em mudanças, pouco a pouco, logo se vê. Tenemos líder!

Mariano não engoliu a verdade: perdeu mais de 10% dos votos (de 37,5% para 27%) desde as últimas autonómicas de 2011. Já para não falar dos 45% que lhe deram maioria absoluta nas legislativas do mesmo ano. Foi aí que começou um rigoroso programa de austeridade, em linha com as orientações europeias, para salvar o país da bancarrota e do despesismo socialista e dos exageros socráticos, ai bolas, isto é tudo tão parecido, do zapaterismo de José Zapatero, assim é que foi. Mas no último ano, vendo que a economia e as exportações finalmente cresceram com menos Estado e mais iniciativa privada, sentindo a baixa do nível do paro (o desemprego), o povo que sofreu duramente a crise iria reconhecer o esforço do Governo, deixar-se de aventuras e votar na continuidade. A cartilha austeritária explicada às crianças.

Não aconteceu. O PP ganhou “rés-vés Plaza de Cibeles” e perdeu todas as maiorias absolutas nas regiões autónomas, além das comunidades de Barcelona e, talvez (à hora de cierre desta página era o mais provável), a grande capital, Madrid.

Porque o que os espanhóis viram em Mariano Rajoy y sus muchachos (prometemos acabar com estes insuportáveis apartes espanholados agora mesmo, descansem) foram quatro anos de arraial Popular. Uma sequência de vómito com escândalos, corrupções impunes ou abafadas, desvios de dinheiro, envelopes de notas, gravações manhosas. Uma percentagem quase impossível de imaginar de políticos e políticas do PP, de todas as regiões que controlavam em Espanha, envolvida em crimes de branqueamento, fraude fiscal, suborno, gastos milionários de fundos públicos em luxos privados, tráfico de influências. Só nos últimos dois anos, os subornos com construtores, avaliados pela justiça, serão de 250 milhões de euros.

O próprio Rajoy teria — da fama não se livra — recebido cerca de 25 mil euros por ano de fundos ilegais do ex-tesoureiro do PP, o proscrito Luis Cardénas, uma dessas criaturas de gel na nuca. Isto tudo numa rubrica que Cardénas descrevia a azul, nos seus caderninhos secretos revelados pelo jornal El País, como “Trajes Mariano”. Até podia ser o nome de uma loja de província, assim como — lembra-te, cabeça, da infância — Confecções Umbelino, mas pelos vistos era o nome que se dava a uma caixa de sapatos cheia de dinheiro (11 mil euros num mês), para Rajoy supostamente comprar fatos e gravatas e aparecer bonito em público. Rajoy, o homem que usa sempre barba para esconder as cicatrizes de um acidente na juventude. O tempo em que Mariano ainda se olhava ao espelho.

Foi entre 1997 e 2009 que este cidadão “foi mais imperfeito”, como diz o outro.

Agora parece que está a acabar a tourada do PP, que se seguiu à festa do PSOE (lembram-se desses tempos, quando os pobres eram os jovens mileuristas que só (!) recebiam 1000 euros por mês). Vieram depois os nimileuristas, seguidos dos “nem-quinhentos-euristas”, e, finalmente, dos desempregados que só queriam uma sandes antes de emigrar. Os jovens que ficaram ocuparam durante meses o centro de Madrid. Forças políticas independentes emergiram para se transformar em partidos e plataformas de poder, como o Podemos. Mais tarde, e à direita, o Ciudadanos.

A mudança em Espanha é tão evidente que se pode ler e tocar o medo daquela metade de Espanha que deixou de ser metade. O jornal ABC, refúgio e púlpito do PP, agelatina-se nos editoriais: “os empresários temem a fuga de investimentos por causa do populismo”; “a chegada da extrema-esquerda a enclaves tão importantes como Madrid e Barcelona terá consequências económicas muito negativas”. Não sabem, como Rajoy, se hão-de sair e apagar as luzes (já fundidas), se arriscam ficar à mercê do que o povo decidir.

As boas notícias são para a antropologia e a linguística comparada: há duas novas línguas oficiais na Península Ibérica, a juntar ao português, castelhano, basco, catalão, etc. Dois tipos de politiquês “língua-de-madeira” que se influenciam mutuamente. Uma saudável livre-circulação de frases palavrosas que dizem tudo e não dizem nada.

De um lado, o mariano-rajoyês, de que é exemplo a resposta oficial ao desaire eleitoral: “No partido iremos tomando as decisões que sejam pouco a pouco mais oportunas e convenientes para nos apresentarmos da melhor forma possível às eleições gerais.”

Do outro lado, o nosso passos-coelhês, refinado pelo primeiro-ministro de Portugal na biografia Somos o Que Escolhemos Ser. Aí, um amigo de juventude informa que “o Pedro escrevia e escreve esplendorosamente bem, melhor do que qualquer um de nós”. Mas a falar suplanta-se. Exemplo de expressão que deverá querer dizer qualquer coisa nessa língua: “Nunca usei a minha capacidade de intervenção para atingir um objectivo preciso de uma forma artificial, que não tivesse que ver com a convicção que tinha quanto ao julgamento que fazia do que pensava do que defendia.”

Rajoy, toma e embrulha! Ou melhor, Rajoy, empaquetate y embrolhate!

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